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Tom Zé nu & cru

Tom Zé abre
O cantor e compositor Tom Zé em seu apartamento em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

O mês de agosto, aquele do desgosto no imaginário popular, abriu a temporada 2009, em São Paulo, desafiando o poder desta bobagem supersticiosa. Nos palcos do Teatro Fecap, o baiano Tom Zé, com sua irreverência e a incrível capacidade de estimular a plateia, de armar jogos, de instigar e dar asas à imaginação, passou a limpo quase cinco décadas de carreira. O balanço final de tal empreitada jamais combinaria com algo amargo como o desgosto. Foram quatro shows, dirigidos por Charles Gavin e Oscar Rodrigues Alves, que ganharão registro em novo CD a ser lançado pela Biscoito Fino e um DVD, que será veiculado como especial pelo Canal Brasil, ambos intitulados Retrospectiva – Espinha Dorsal da Carreira e com lançamento e estreia na grade do canal previstos para novembro. Gavin, que tem feito o papel de um verdadeiro titã na defesa da memória da música brasileira ao resgatar do total ostracismo a obra de gente da estatura de Tom Zé, como Sérgio Sampaio, Gerson King Combo, Os Cobras, União Black, Quinteto Ternura e um sem-número de outros grandes artistas, reiterou, em nota à imprensa, a importância do projeto: “Tom Zé fará uma retrospectiva de sua obra, algo que raramente fez em sua carreira. Tocará, com sua banda, canções de álbuns importantíssimos como Grande liquidação (1968), Se o Caso é Chorar (1972), Todos os Olhos (1973), o superclássico Estudando o Samba (1975) e canções de seu trabalho mais recente, Estudando a Bossa (2008)”. A efeméride, de fato, merece celebrações, e, a despeito de algumas complicações de agenda, porque a notícia chega nos tumultuados dias de retorno de férias, encontramos Tom para uma deliciosa manhã de boas conversas e situações imprevistas.

1° Ato – O Juca Chaves dos pobres 

Tom Zé é um desses raros sujeitos que, ao longo da vida, desenvolveram uma apurada capacidade de criar raízes e estabelecer vínculos com as coisas que o cerca. Mora na mesma rua do bairro de Perdizes, em São Paulo, há mais de três décadas, tempo em que sempre esteve ao lado de sua valente e serena companheira, Neusa, que, talvez, rendida pela impossibilidade de se envolver com o jogo lúdico e instigante do marido, sempre o apoiou, incondicionalmente, e foi determinante em ajudar a construir essa figura mítica que é Tom, Antônio José. Ele nos recebe ofertando cadeiras, pede para ficarmos à vontade, vai até a janela, observa o dia e aponta para a enorme fachada do prédio em frente, onde voluntariamente cuida de um belo jardim que surge pleno, a coisa de 15 m abaixo de nossos olhos. Tom comenta que chegou ao bairro quando viveu naquele mesmo prédio em frente, a partir de em 1973 e depois de alguns anos de convívio com Neusa em uma avenida Angélica, que, segundo cantou em Augusta, Angélica e Consolação, cheirava a consultório médico.

O frio desta manhã é bastante rigoroso e ele recorda que, no começo dos anos 1950, o prédio fora construído de frente para a rota diária do sol justamente para aproveitá-lo ao máximo, porque São Paulo, regularmente, era metade do ano muito fria. Tom observa que as condições climáticas da cidade mudaram consideravelmente e lembra que lidar com um sol que já ardia intenso na janela, às seis da manhã, e que partia só às oito da noite, passou a ser algo insuportável. Foi a deixa para atravessar para o outro lado da rua.

É evidente que a São Paulo cantada por ele mudou em muitos outros aspectos, mas é possível suspeitar que Tom aprendeu a amá-la com todas suas grandes contradições, dilemas e complexidades, porque, desde sempre, ele atentou-se em interpretá-la e redimir-se de sua aridez de concreto em canções inusitadas, como a hilária A briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel. Mesmo a duras penas, como quando viveu quase duas décadas de completo ostracismo, ele não hesitou em inserir-se profundamente na metrópole que o recebeu, plena de possibilidades, e que o ajudou a moldar sua incrível personagem artística. Tom é um sujeito que, por exemplo, defende a rua Santa Ifigênia, zona comercial popular de componentes eletrônicos, informática e instrumentos musicais, no coração de São Paulo, como um lugar sagrado. Símbolo da capacidade do brasileiro de driblar adversidades, e ponto fundamental para viabilizar a criação de seus instrumentos, como o enceroscópio, feito à base de escovas mecânicas de enceradeiras, e as frequentes compras de componentes, muitas vezes, solicitados com surpresa nos balcões das lojas: “Mas para que o senhor quer isso? Isso é peça de torre de transmissão de televisão!”, recorda sorrindo.

Sobre a vivência na metrópole, resgato assunto que é comentado por ele em um texto intitulado Aniversário de São Paulo. Tom recorda o episódio, vivido com Gal Costa, em 1965, ocasião em que ele veio à cidade para integrar o espetáculo Arena Canta Bahia, de Augusto Boal, acompanhado dos amigos Gal, Bethânia, Gil e Caetano: “Gal e eu, a gente tinha um namoro meio atrapalhado. O dia em que ela me chamava pra sair era uma festa, porque eu nem tinha direito de chamá-la pra sair. Ela disse: ‘Tom, vamos fazer umas compras na cidade?’. Vestia uma calça comprida de casimira, daquelas calças de filme de Hollywood dos anos 1940, e eu estou com Gal, na rua, e todo mundo bolindo com ela, daí eu falei: ‘Pô, sou um homem de merda, mesmo, não é? Já sou acanhado pra diabo, aí tô aqui  com a moça e todo mundo bole com ela?!’. Gal não era conhecida, não era nem Gal Costa, ainda, era Gracinha. Depois de muito sofrimento, uma senhora teve a caridade de chamar a gente no fundo de uma loja e falar: ‘Minha filha, moça direita não sai de calça comprida em São Paulo. Quem sai de calça comprida em São Paulo é prostituta!’. Foi aí que a gente compreendeu tudo.”

A história descontrai, e o lado satírico de Tom, aos poucos, vai se aquecendo e começando a soltar faíscas. Já em 1958, em sua primeira aparição na televisão, ele deu amostras de sua deliciosa irreverência. No programa Escada Para o Sucesso, horário nobre da TV Itapoã, em Salvador, ele entra e defende uma de suas primeiras canções, debochadamente intitulada Rampa para o Fracasso. Ao lado do amigo Capinam, Tom compunha pequenos temas de protesto para o CPC (Centro Popular de Cultura), em Salvador, e, por esse mesmo deboche, era chamado de “Juca Chaves dos Pobres” nas páginas do jornal Diário de Notícias. Polêmico e sagaz, foi importante colaborador e teórico da Tropicália, movimento liderado pelos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, por um breve período, pôs de pernas pro ar as convenções musicais, políticas e comportamentais de um País que vivia a grande contradição de estar de portas abertas para um novo mundo, de apelos urgentes, sob a vigília ostensiva de militares no poder e a barra pesadíssima do Ato Inconstitucional número 5.

Apesar de exercer no grupo papel dos mais influentes no campo da teoria musical, graças aos sete anos que estudou com os maestros H.J. Koellreutter e Ernst Widmer, ícones da revolução radical proposta pelo reitor Edgar Santos na Universidade Federal da Bahia, naqueles primeiros dias da década de 1960, Tom, ao recordar o período, diz não ver muita afinidade nas coisas que ele fazia com as coisas produzidas por Caetano e Gil. Valia-se, diz, de ferramentas que aprendeu a manipular desde a infância, em Irará, quando lidou com preconceitos e total ausência de empatia com sua música, desafio que o fez criar saídas para a inviabilidade imposta pelos outros: “Deixe-me ver se lhe dou uma ideia do que aconteceu no começo. Eu procurava alguma coisa pra me segurar no mundo, esse é o motor primeiro, é o ponto de partida, e música não era assim uma coisa que estava muito evidente, não tinha nada daquilo de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou logo sua vocação!’. Era o caso de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou que não tinha a menor vocação para a música’. Eu fazia um tipo de música em Irará que era o seguinte, eu ia falar do seu trabalho, da roupa que você está vestindo, da maneira que você se pinta, dos objetos que você usa, de como você se sentia, imediatamente identificado como um personagem dentro da música e incapaz de ver que eu não era cantor, como se eu enganasse você. Minhas músicas eram feitas para impedir o ouvinte de descobrir que eu não era cantor. Comecei a fazer música que você, imediatamente, começava a pensar, por exemplo, que quando eu falava ‘Guilherme se requebra’, você já era personagem da canção”.

Éverton, o pai de Tom, parece ter carregado nos genes a mesma sorte do filho em ter a vida transformada pela força do acaso. Corria a década de 1920 e Éverton detinha o espólio de seu pai, que, seguindo a tradição do sertão baiano, havia sido enterrado dentro de um pote que continha as libras esterlinas que somavam toda a herança do patriarca. Caçula de uma família vitimada por vários problemas de saúde, sem nenhum irmão, os primeiros a pleitearem a divisão foram primos de segundo e terceiro graus. Cansado de lidar com tanta aqueles que apareciam para defender parentesco e direito às libras, Éverton decidiu convocar todos os pretendentes em um local neutro, para por um ponto final à questão da partilha. Saiu de lá com uma quantia ridícula, mas já na rua encontrou um vendedor de bilhetes da loteria federal que insistiu na venda da centena 459 e, batata, centena 459 na cabeça. Da noite para o dia, da condição de grandes privações, tornou-se renomado comerciante e emergente na sociedade de Irará, ingressando na família Santana, das mais tradicionais e com vários membros simpatizantes do comunismo.

Sobrinho de Fernando Santana, líder da UNE e futuro secretário geral do Partido Comunista em Salvador, Tom vivia cercado de informações e visões conflitantes de mundo. Observando os processos cultos dos tios e a linguagem do povo que circulava pela loja de tecidos do pai, em Irará, foi se tornando um poliglota da vida. Chegou até mesmo a enfrentar o preconceito de pessoas que diziam que “filho de rico” – onde ele bem ressalta: “Em Irará não tinha rico, tinha pobre remediado” – não podia estudar música, que isso era coisa de pobre. Sem nunca aderir ao Partido Comunista, mas influenciado pelo tio, ele foi estudar em Salvador e integrou o CPC, de forte apelo jovem, ao lado do amigo e poeta José Carlos Capinam, diretor do núcleo musical do CPC. Em paralelo, Tom dedicou-se aos estudos na UFB, fato que resulta em seu ingresso, anos mais tarde, no corpo docente da universidade: “Quando a gente era mais novo não tinha como não ser esquerdista, mas eu nunca fui do partido, não porque achava que o partido era indigno. Não fui do partido porque não tive vontade de ir, mas devo dizer que quando fui diretor de música do CPC, estive lá graças a Nemésio Salles, que tinha sido secretário geral do partido, e que, quando tive um desentendimento na casa de meu tio e ia voltar para Irará, me convenceu a ficar em Salvador. Devo o fato de estar aqui, hoje, graças a Nemésio Salles, que me deu condições de ficar. E foi o Partido Comunista, o velho partidão, que me pagou para ficar naqueles dias. Tenho esse débito com ele. Eu era diretor de música do CPC e com esses trinta cruzeiros por mês eu pagava minha parte no apartamento do Nemésio, dividido por ele, eu, José Alberto Bandeira, que era o então secretário-geral, e o cineasta Geraldo Fidélis Sarno. Éramos os habitantes desse apartamento, que foi o primeiro lugar invadido na hora em que estourou o golpe de 1964”.

Embora defenda uma postura apartidária, Tom é cidadão de plenas convicções políticas e se posiciona, sem ressalvas, quando defende seus pontos de vista. Ao enveredarmos por questões ideológicas que cerceavam o dia a dia de jovens com dedicado grau de participação, como ele, Tom relembra uma capa de revista do período e põe-se a discorrer sobre assunto que desemboca na crônica política dos dias de hoje: “Lembro da capa de uma edição da Revista Civilização Brasileira com um homem com um peixe sendo fisgado, uma reportagem sobre a pesca artesanal. Ora, naquela época o próprio censo dizia que a população iria dobrar e que a capacidade produtiva de alimentos também precisava dobrar pra não matar metade dessas pessoas de fome. A capacidade da pesca artesanal nunca iria chegar perto do que seria necessário, seria preciso desenvolver a pesca industrial, a reportagem explicava, e como é que nós vamos defender esse tipo de Brasil bucólico que a esquerda quer, esse tipo de Brasil que não abre as fronteiras para a modernidade e que mata gente de fome. Tinha argumentos como esse, que também explicam muito porque o Brasil bucólico que a esquerda queria não podia se conformar com o Brasil que, na verdade, Caetano e Gil introduziram na cabeça das pessoas, um pensamento que, mesmo sob a égide de uma ditadura, ia levar o Brasil a um salto imediato para a segunda revolução industrial. Nós, toda vida, fomos povo inventor. Na hora em que o avião ia subir, tivemos uma pessoa lá. Outro dia tava no jornal ‘morreu o pai da guitarra!’ (o guitarrista Les Paul, criador do célebre modelo homônimo de guitarra). Morreu o pai da guitarra uma porra! Pai da guitarra é Osmar e Dodô, que a fizeram muito antes, na Bahia. E é bom dizer que Santos Dumont só tem o nome dele citado porque a França tem grana, ele era Dumont e estava em Paris naquele momento. Se não, os irmãos Wright seriam os únicos donos da aviação. Era com isso que Caetano e Gil, conscientemente, estavam lidando. Ao mesmo tempo houve a atitude repressiva da ditadura? Sim! E o que a ditadura queria? Que nossos cérebros se diminuíssem, ora! Eu era namorado de uma professora e o salário dela foi instituído por João Goulart, três mil cruzeiros! Olhe o que significava isso: que as pessoas de capacidade estavam convidadas a ser professores, professoras, e salário nenhum pagava aquilo. Jango estava privilegiando o pensamento, o desenvolvimento das crianças. E o que foi que a ditadura fez? O contrário! Degradou completamente os professores. Veja como eles estão até hoje… Servindo ao capitalismo, nessa degradação do ensino. Isso é uma das coisas mais terríveis. Por que falta educação? Porque o governo não quer, claro! O próprio governo de esquerda que está instaurado no Brasil precisa, por exemplo, que o Nordeste seja miserável para poder lhe dar o Bolsa Família. Se o Nordeste deixar de ser miserável, eles não vão ter aqueles votos todos. É uma maravilha para o governo que o Nordeste seja a miséria que é, porque eles estão dispostos a todas as providências pra que, por exemplo, o Nordeste não possa melhorar e eles se eternizem no poder. É isso que está em jogo, na hora em que alguém mexe com a cultura da nação. E foi isso que Caetano e Gil fizeram com consciência, sabendo o que estavam fazendo”.

2° Ato – Saudades perfumadas

A prisão e exílio de Caetano e Gil no final de 1968, e o consequente desmanche do grupo tropicalista, foi um difícil período inicial de transição, em que cada um iria seguir seu rumo. Gil, Caetano, Gal e Bethânia tiveram carreiras de grande apelo popular, enquanto Tom seguiu renitente em suas crenças, rumando o caminho que gente como Jards Macalé, o guitarrista Lanny Gordin e outros coadjuvantes da aventura tropicalista iriam, amargamente, experimentar, um ostracismo vergonhoso. Pergunto se essa ruptura, de alguma forma, também estabeleceu um rompimento dos velhos laços de amizade que havia entre eles, se ele ainda se relaciona com esses amigos e se Tom acha que, no campo artístico, ainda hoje, há convergência entre o grupo. Ele silencia brevemente e, depois, constrói um argumento conciso sobre o que considera suas escolhas e as escolhas dos outros: “Olha, vou dizer uma coisa, acho que não tínhamos nenhuma afinidade. Quando nos juntamos e conhecemos as músicas uns dos outros, eles decidiram que eu ia ficar junto deles e fizemos juntos o primeiro show, o segundo, viemos juntos pra cá fazer o tropicalismo e, na volta da Europa, após o exílio, eles decidiram que cada um deveria ir pro seu lado. Na hora em que eu entrei no lance todo não sabia que seria uma coisa tão grande, ou que eu estava me aproximando de gênios que, na verdade, eles são. Na hora da saída, e eu já sabia disso, fiquei muito triste, até porque era uma perda muito grande de amizade”.

Tom Zé, show Fecap
O músico durante show dirigido por Charles Gavin, realizado no Teatro Fecap, em agosto de 2009, em São Paulo. Foto: Divulgação

Os loucos e tortuosos anos de 1968 a 1973 constituem o período de vida e morte de Tom Zé, na Tropicália. A despeito da perda de ideais e projetos coletivos, a dissolução do grupo, no entanto, abre seus horizontes. Quando ele propõe caminhos novos e radicais a partir do álbum Todos os Olhos, de 1973, por exemplo, adota procedimentos e escolhas que resultam em um intrincado mundo novo de sua capacidade autoral. Momento em que ele descobre veias abertas para canalizar toda sua prolificidade e capacidade de criação, fluxo que corre natural até hoje, com ele vivenciando 72 anos de experiências acumuladas.

Em 1979, Celso Favaretto publicou o livro Tropicália Alegoria Alegria. Nem sequer mencionou álbuns de Tom Zé na discografia do movimento, nem mesmo Liquidação Total, considerado experimento embrionário do movimento antropofágico. Pergunto se nestes idos de 1973 ele já desconfiava que estaria fadado a tal esquecimento. Tom se cala. Minutos antes, sobre a questão do rompimento de amizades, me intimou a ir “direto ao assunto”. Ele, então, organiza as palavras e coloca ponto final na questão: “No quinto aniversário do tropicalismo eu era tropicalista; era parte do grupo, da imprensa, da festa e de tudo. No décimo, como eu estava fora de circulação, comecei a ficar, assim, lembrado, apenas. No décimo quinto, eu estava quase fora. No vigésimo, eu já tinha desaparecido completamente. A RCA tem uma compilação de compactos do início de carreira do grupo todo (Eu vim da Bahia), e, ali você já vê que eu faço algo completamente diferente. Eles eram ‘bossanovistas’. Então, já estávamos separados há muito tempo. Mas eu, ao contrário, fiz um pouco de esforço a partir do momento que comecei a cantar com eles, nos shows na Bahia, no Teatro Vila Velha, em meu primeiro, segundo e terceiro discos. Fiz um esforço muito grande, pra conseguir botar o que eu produzia, que não se chamava de ‘música’, no apelo da música popular. Fui no Jornal da Bahia entregar minha última matéria e, por acaso, quando subi na redação, me disseram: ‘Caetano está aí, no terceiro andar’. Cheguei pra ele e falei: ‘Caetano, que saudades!’. Éramos realmente companheiros e amigos. E ele disse: ‘Poxa, Tom, cadê você? Eu já te disse que aqui na Bahia você só vai se aborrecer, bicho. Em São Paulo você pode se aborrecer também, mas pode ser que aconteça alguma coisa’. Eu, como tinha dinheiro, peguei o avião e vim pra cá. Neste mesmo dia de minha chegada, ele me apresentou o Sgt. Pepper’s dos Beatles, traduzindo música por música, porque sabia que eu não entendia porra nenhuma de inglês. Na noite do mesmo dia, ele me levou pra ver o Rei da Vela e fiquei convencido de que devia vir mesmo pra cá. As pessoas me diziam: ‘Como é que você pode estar envolvido com eles? Eles são artistas, você é um troglodita!’. Aquele tempo foi dos melhores em minha vida”.

3° Ato – Complexo de épico / Rampa para o fracasso

Os anos 1970 confirmam a eleição de certos mitos e meandros massivamente consolidados no estatuto firmado pela MPB e, à medida que seus pares de tropicalismo iam se tornando semideuses deste novo olimpo, herdando muito precocemente o status que o herói de todos, João Gilberto, levou quase uma década para experimentar, Tom foi trilhando o caminho inverso. Investiu cada vez mais em experiências de linguagem e na produção de instrumentos alternativos, criados a partir de lixo industrial, como engrenagens de enceradeiras, mecanismos de batedeiras de bolo, de máquinas de lavar e de buzinas de automóveis, sucatas que, graças a sua inventividade, ganharam resolução musical e tiveram sua funcionalidade dilatada em álbuns históricos em sua discografia, como, por exemplo, Correio Estação do Brás, de 1978.

Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 1993, Tom relembra que chegou a vender um imóvel na praia para investir na construção desses instrumentos que ele inventava e, assim, se definiu, na mesma entrevista, como incapaz de estrategiar procedimentos. Apesar de trilhar um caminho anticomercial que o levaria à obscuridade, Tom defende com veemência que não houve resistência de mercado, incompreensão ou nada que pudesse ser interpretado como motivo para seu fracasso, nada que não estivesse dentro dele mesmo.

Capa dos álbuns “Grande Liquidação” (1968) e “Todos os Olhos” (1973), dois clássicos da discografia de Tom. Foto: Divulgação

“Quando você não é tocado, no Brasil, tem uma coisa de dizer que você é vítima da cultura de massas, mas, como eu não tenho vocação pra vítima, fui trabalhar em casa. Eu não era chamado pra trabalhar na rua, não era chamado pra entrevista, não era chamado pra porra nenhuma. Então, ia pra casa trabalhar. Talvez o que mais me fez trabalhar durante esse tempo de ostracismo foi o fato de eu defender que a queixa não era meu lema. Não gosto de fazer queixa. Prefiro culpar a mim mesmo. Fiz esses instrumentos em 1978 e, dez anos depois, o Instituto Goethe chamou a imprensa brasileira, revistas, como a Veja, para ir ver umas bandas americanas que estavam produzindo músicas com instrumentos eletrodomésticos, e era a mesma manchete na Folha de São Paulo, no Estado de São Paulo. Mas daí, um redator da Veja escreveu, de cunho próprio: ‘O Instituto Goethe chamou a gente pra ver umas bandas americanas que usam instrumentos de trabalho ou instrumentos de cozinha e tal. Olha, não tem novidade nenhuma nisso, principalmente, fazendo o que fazia Tom Zé, em 1978, e que já era muito melhor. Eu tinha 15 anos, na época em que ele apresentou os instrumentos dele na GV’, disse o repórter. João Araújo, pai do Cazuza, por exemplo, queria me ajudar pessoalmente, era diretor da Som Livre. Ele já tinha sido meu produtor, e eu sabia que ele tinha uma possibilidade de diálogo. Fui a ele mostrar os instrumentos, e ele deixou rolar tudo do jeito que eu queria fazer. Quis lançar pela Som Livre, quis botar no festival da Esso, mas aí eu não sabia que a gravadora era quem escolhia os artistas para o festival. Eu ia ser ‘o artista da Som Livre’, mas meti as mãos pelas pernas. Quando fui ver não estava mais no esquema. Fui convidado pra um festival do Canal 4 e achei que não era para eu participar, que era bobagem, e também não fui. Então, ninguém tem culpa de nada. Você mesmo se mata, você mesmo é seu próprio algoz”.

Dessa condição declarada de autossabotagem, Tom mergulhou em um período sombrio, de extrema reclusão e improdutividade, agravado por problemas de saúde. Ele começa a pautar esses temas, mas, num salto temporal, subitamente passa a narrar a fantástica história de sua ressurreição para o mercado fonográfico e para a própria vida, por meio da descoberta ocasional de seu disco Estudando o Samba, de 1975, pelo americano David Byrne, líder dos Talking Heads, um dos pilares do movimento New Wave, surgido na efervescente vanguarda da Nova Iorque do primeiro quinquênio dos anos 1970. Sim, a transição do total anonimato para esta figura celebrada em Paris, Nova Iorque, Londres e Berlim, sugere um conto de fadas moderno e, convenhamos, já foi deveras explorada.

Tento, então, extrair de Tom algo que não tenha sido tão excessivamente narrado sobre esse período e ele retoma o raciocínio para falar dos dias amargos que precederam sua tardia redenção. “Eu estive muito doente, meu estômago era um órgão de choque, naquele tempo. Só fiquei bom quando comecei a fazer Tai Chi Chuan. Uma coisa milagrosa. Ia lá tomar massagem e tal, uma hora de meia dúzia de movimentos fantásticos pra cabeça, pro corpo, mas eu tinha vergonha de ir pra aula de Tai Chi Chuan. Sempre tendo vergonha… Pois bem, o oriente me salvou aqui. Em 1985, eu estava morto. Enganava Neusa. Levantava pra enganar ela, pra dizer que tava vivo. Eu tava morto. Não tinha energia nenhuma. Neusa, um dia, falou assim: ‘Por que não vamos na macrobiótica?’. Pra quem tá morto, aqui ou na macrobiótica, tanto faz. Chegando lá, o doutor me receitou uma semana de arroz, e como eu não podia comer nada antes, porque ficava mal do estômago, o arroz, feito benfeito, como a Neusa sabia e sabe fazer, era minha vitamina C. Depois de uns quatro dias meu intestino voltou a funcionar como não funcionava há muitos anos. Eu não sabia que meu problema era aquele. Eu já estava todo desgraçado. A mão não podia nem pegar em livro porque estava despelando, por excesso de ácido úrico. Tudo problema emocional. E, comendo errado, foi piorando. Daí, quando comecei a macrobiótica, passados os dez dias de arroz, eu era outra pessoa. Inclusive, teve um negócio engraçado: pude ter a experiência do que é uma droga pesada. Porque arroz depois do sexto dia, rapaz… Você pode imaginar, se seu cérebro era de um jeito e você passou 40 anos absorvendo toxicidades maiores, produtos e produtos que começam a circular no sangue e modificam o cérebro, aí você começa a voltar à mesma toxicidade que você tinha quando tinha seis meses… Rapaz! Aquilo refaz, novamente, conexões neurais que você não sabia mais, que o cérebro não sabia mais e é aí, então, que você sabe realmente o que é uma droga pesada”.

4° ato – Zénial

O título deste quarto ato é uma alusão à resenha de Com Defeito de Fabricação (1998) publicada na cultuada revista francesa Les Inrockuptibles. Tom separa diversas matérias, organizadas em um clipping, e exibe, sorridente, páginas do New York Times, Village Voice, das revistas Vibrations e Time Out, onde são celebrados, com entusiasmo, novos lançamentos e reedições de sua discografia, seus frequentes shows e a parceria com o grupo Tortoise. Cinco ou seis páginas de jornais e revistas que podem atestar a redenção de um homem, de tantas provações, que precisou confundir muito para esclarecer sua importância aos incautos e poder trilhar os mesmos degraus que o levaram ao mesmo porto seguro onde, comodamente, outros estão há décadas. Filho atento da tradição oral do Nordeste, Tom é verborrágico e persuasivo. Começa a falar em tom baixo, pausado, e vai envolvendo o ouvinte em uma teia de argumentos que se amarra e se estende com uma desenvoltura fascinante. No começo da entrevista ele próprio avisa que Neusa procura sempre regrá-lo, impõe horários fechados, mas que, no entanto, ele sempre extrapola o cronômetro de sua mulher. Diz que fala compulsivamente e desnorteia os pobres jornalistas que vão conversar com ele, gente que, na sua visão, deve passar horas polindo e tentando extrair algo objetivamente jornalístico do que colhe durante esses encontros. Discordo de Tom, e embora me preocupe em concluir o roteiro que havia elaborado, óbvio que eu sabia desde o princípio que estava lidando com um sujeito imprevisível. Sabia que a qualquer momento podia ter meu roteiro sabotado pela compulsão de Tom, o que não deixa de ser uma tremenda boa expectativa e uma sorte rara, visto que vivemos em um tempo onde tudo é cada vez mais previsível, asséptico e inofensivo.

Voltamos a falar da situação atual, dos dilemas e desencontros entre a indústria e o mercado consumidor de música, e concordamos que, se provocados os estímulos, o grande público e aqueles que produzem música com o propósito popular vão querer, sim, a informação e a experiência do novo. Alguns eventos culturais patrocinados pelos governos de diversas esferas estão aí, precariamente, a validar essa tese. Enveredo pelo assunto à procura de algum comentário de Tom sobre o lamentável episódio ocorrido na Virada Cultural 2009, no Teatro Municipal, no show em que ele revisitou seu álbum de estreia Liquidação Total, quando ocorreu o episódio da menina que, furiosa com a (des)organização caótica do evento, esbravejou, o xingou e saiu de costas para o público, de dedos médios em riste, logo na abertura de seu show. Pouco foi falado sobre tal episódio, na imprensa, nos dias que o sucederam. Lembro que, por alguns segundos, Tom e sua banda mergulharam em um silêncio constrangedor e se saíram com uma execução tensa e enérgica de São São Paulo, como que a sugerir que tudo aquilo fazia parte de nossas grandes contradições. Peço a ele uma leitura do episódio: “Que bom que você se lembrou disso. O normal seria eu dizer: ‘Agora não posso falar disso porque o público está aqui, estamos respeitando os horários, estamos atrasados e temos que fazer’. Os shows anteriores atrasaram e, consequentemente, o nosso também. Eu estava preocupado com isso e, ao mesmo tempo, tendo de administrar a situação de abandonar uma pessoa aflita, parecendo que eu estava desprezando da queixa dela. Como é que eu iria parar pra tomar providências com o que estava acontecendo lá fora? Pois foi por isso que eu fiquei parado, pensativo. A moça, depois, veio comentar o episódio. Disse que a polícia estava maltratando as pessoas, que pessoas credenciadas não conseguiam entrar”.

A bela imagem da atriz francesa Brigitte Bardot foi a fonte de inspiração para o retrato que foi capa da edição 26 da Brasileiros, feita pela fotógrafa da revista, Luiza Sigulem

Dois colegas cinegrafistas nos acompanham na entrevista. Um deles não hesita em nos interromper para ilustrar que, dois anos antes, houve o quebra-quebra na praça da Sé com o incidente do show dos Racionais MCs, episódio que fez com que, nos anos seguintes, segregassem o rap no parque Dom Pedro II. Tom retoma rápido o raciocínio: “É por isso que eu falo que é importante essas festas irem para as periferias, não ficar só aqui no centro. Eu fiz minha primeira Virada Cultural no Anhangabaú. Na segunda, me mandaram para um CEU na Zona Leste”. E a aceitação, questiono?: “Veja bem, você tem de fazer um certo cálculo. Em qualquer lugar que você for tocar as coisas serão sempre diferentes. Você vai ao Municipal e sabe que não vai encontrar em um show desses aquele mesmo ambiente. É diferente, mas, claro, é preciso tomar o curso das coisas com a plateia, receber um feedback da capacidade de interesse que a coisa provoca. Fiz até um número improvisado, que a gente faz raramente, e foi uma felicidade, como se as portas se abrissem e eles estivessem livres da televisão, da escravatura da televisão, por uma única noite. Não tem um patrão que quer desenvolver nas pessoas a violência, não tem esse patrão no comando”.

Reitero o argumento de Tom comentando que naquele mesmo dia, horas antes, vi um Teatro Municipal lotado assistir, extasiado, Arrigo Barnabé executar Clara Crocodilo em seus arranjos originais. Convenhamos que não se trata de música gastronômica, de fácil digestão, como definiu Umberto Eco. Tom, que já teorizou sobre o pagode e o funk carioca, tidos por muitos como sinônimos de decadência de nossa música, discorda de minha observação em defesa da liberdade de manifestação cultural: “Barnabé é há tempos um orgulho de São Paulo, mas quando uma coisa acontece aqui e agora é muito perigoso a gente querer julgar. O povo tem de ter toda liberdade do mundo pra fazer o que pensa e o que gosta, qualquer coisa que ele queira ou que ele possa. Augusto de Campos, desde a hora em que Caetano, em 1965, defende na Revista Civilização Brasileira a retomada da linha evolutiva da música popular brasileira a partir de João Gilberto, Augusto e os concretos, disseram: ‘É esse o homem da gente! Este rapaz tá dizendo alguma coisa’. Você vê como esses concretos eram espertos e ativos? Augusto, por exemplo, já valorizava e defendia até mesmo Roberto Carlos, que era o grande vilão da época, não é? O João Gilberto fala que, em 1969 ou 1970, quando tinha os famosos shows do teatro Paramount (Bossa no Paramount), que eram celebrados como ‘a verdadeira música popular brasileira’, ele estava na porta, um dia, na saída, e foi ver, como quem não quer nada o que acontecia ali. As pessoas nem se lembravam dele, fazia quase dez anos que ele não aparecia na televisão, ele entrou por um canto, alguém perguntou se ele havia gostado e ele disse: ‘Olha eu prefiro iê-iê-iê do que jazz retardado’. E é verdade. Quando Roberto fez seus primeiros discos de iê-iê-iê, aquele álbum da estrada de Santos (Roberto Carlos em Ritmo de Aventura), eram coisas que você, quando ouvia, inevitavelmente se arrepiava. ‘Quero que tudo mais vá pro inferno’ é tão bom, que Roberto Carlos agora proibiu. Não deixa tocar, não canta e não deixa ninguém cantar!”

No episódio do show da Virada Cultural, em 2009, em São Paulo, outro inusitado fato foi destaque, e ele diz muito sobre Tom Zé e sua inquietação em questionar papéis, estatutos e protocolos. Dezenas de fotógrafos espreitavam-se, à beira do palco, quando ele decidiu interromper o show para propor uma divertida inversão de papeis e convidou todos os fotógrafos a subirem no palco. Da primeira fila ele tomou uma das câmeras emprestada e pôs-se a retratar os fotógrafos. A despeito do descuido que teve com ele, em meados dos anos 1970 e ao longo de toda a década de 1980, Tom tem uma relação de generosidade e colaboração com a imprensa, que passou a demonstrar tamanho interesse tardio por ele e sua obra como se movida por certo sentimento de culpa e necessidade de justiça. Coisa rara, neste mundo de celebridades instantâneas inatingíveis, é justo destacar que Tom também dá total abertura a seus fãs, que travam contato quase diário e dialogam com ele, por meio do blog tomze.blog.uol.com.br.

O cantor e compositor durante o Festival Internacional da Canção, vencido por ele com a composição “São São Paulo”. Foto: Divulgação / Record

Tom começa a se preocupar com o horário, pois está envolvido na pós-produção do novo álbum. Atrasado para alguns compromissos vespertinos, precisa que o deixemos cumprir sua agenda. Minutos antes, nossa fotógrafa, Luiza Sigulem, sugere um flagrante, apenas de cueca, sentado, de pernas cruzadas em um banquinho, empunhando seu violão, uma alusão à célebre foto de Brigitte Bardot. Ele concorda, de imediato. Quando encerramos, Gregório, um dos amigos que filmou a entrevista, pede a Tom uma foto conosco. Ele consente, mas quando estacionamos a seu lado, ele faz um breve suspense e emenda, sorrateiro: “Aliás, pode tirar foto comigo, sim, mas só se for de cueca também!”. Sim, meus amigos. Foi assim, de calças arriadas, cantando Brigitte Bardot e com a sensação de roteiro desprezado e tarefa cumprida que nos despedimos de Tom Zé nesta manhã gélida de quarta-feira, em que o homem que escreveu Imprensa cantada ousou deixar a pobre imprensa quase nua.

Kirk Douglas, segundo Denilson Monteiro

O ator Kirk Douglas em cena de Spartacus (1960), de Stanley Kubrick. Foto: Universal Pictures

Todo mês convidamos uma personalidade do universo cultural para escolher algum artista ou obra que tenha sido especialmente marcante em sua vida. Nesta edição, perguntamos para o escritor e roteirista Denilson Monteiro quem ele colocaria em seu “altar”. A escolha do autor de Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos ImperialA Bossa do Lobo: Ronaldo Bôscoli, Chacrinha, a Biografia e Divino Cartola foi um gigante do cinema, que, no último dia 9*, completou um século de vida.

Foi no dia 3 de julho de 1976 que assisti pela primeira vez a um filme estrelado por Kirk Douglas.  Era um sábado, e a TV exibiu O Invencível (Champion, filme de Mark Robson, de 1949), a história de um pugilista em luta dentro e fora do ringue. Eu, um garoto de 9 anos, fiquei fascinado pelo ator dono de toda aquela fúria prestes a explodir, bem parecido com os personagens sobre os quais, muitos anos depois, eu escreveria. Após estrelar filmes como Assim Estava Escrito, A Montanha dos Sete Abutres, Ulisses e Chaga de Fogo, Issur Danielovitch Demsky, o verdadeiro nome do astro de covinha no queixo, decidiu tornar-se produtor. O trabalho mais famoso da Bryna, companhia que batizou com o nome da mãe, é Spartacus. Como seu personagem, o gladiador que desafiou a Roma escravocrata, Douglas travou suas batalhas: insistiu no jovem Stanley Kubrick como diretor; fez valer suas decisões diante do impetuoso Stanley e derrotou o macartismo ao fazer constar nos créditos do filme o nome do roteirista Dalton Trumbo, até aquele momento trabalhando na clandestinidade. Kirk foi indicado três vezes ao Oscar, obteve somente um pelos 50 anos de carreira, em 1996. Sua única frustração foi não ter interpretado R.P. McMurphy em Um Estranho no Ninho, seu papel no teatro, mas que ficou com Jack Nicholson no filme produzido por seu filho, o também ator Michael Douglas, e dirigido por Milos Forman, que o considerou além da idade para o personagem. No dia 9 de dezembro, Kirk Douglas completou 100 anos. Sua memória o trai, fazendo com que recorra a Anne, sua esposa há 62 anos, para lembrar-lhe que Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, outro roteiro de Trumbo) é seu filme favorito; a fala está comprometida por um AVC e a coluna ficou ruim após um acidente de helicóptero. Porém, ele jamais deixará de ser Spartacus.

*Originalmente publicado na edição de dezembro de 2016 da revista CULTURA!Brasileiros

MAIS

Veja o trailer oficial de Spartacus

 

O desbunde tropicalista de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues

Arnaud Rodrigues, como Paulinho Cabeça de Poeta, e Chico Anysio, como Baiano. Foto: Reprodução / CID

“Faço do meu canto a neura existencial / O conteúdo do cotidiano, o dia a dia da vida / A eletrônica está substituindo o coração / A inspiração passou a depender do transistor / O poeta de aço, de poesia programada, é demais para os meus sentimentos, tá sabendo?”.

O papo cabeça supracitado – para defini-lo com uma gíria bem anos 1970 – é proferido pelo personagem Baiano, no decorrer do registro de Nêga, segunda faixa do LP Sangue no Cacto (título não estampado na capa, mas no encarte). Lançado pela gravadora CID, o álbum fez grande sucesso e consagrou a feliz parceria entre os humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues. Estivessem inseridos em um LP de Caetano Veloso ou de Chico Buarque, os versos tornar-se-iam máximas replicadas pela juventude intelectualizada e politizada que combateu o regime militar no Brasil dos anos 1970.

Lançado em 1974, depois do enorme sucesso do quadro criado por Chico para o programa semanal Chico City, Sangue no Cacto chegou a outros destinatários e atingiu um espectro diverso. Daí seu enorme valor, porque, por mais cifradas que fossem as mensagens contidas no álbum, pequenos recados, como o que abre este texto, instigavam o ouvinte a suspeitar que as coisas não andavam nada bem no seu amado Patropi.

Com a visibilidade de nosso maior humorista, questões urgentes do cotidiano do País caíram nos ouvidos e na boca do povo e deixaram em alguns a amarga percepção de que era melhor rir para não chorar. Se o clima sombrio da repressão pairava no ar, na tentativa de amortizar o terror daqueles dias, os generais vendiam as delícias do  Milagre Econômico – espetáculo econômico financiado com empréstimos infindáveis, que legaram ao País décadas de endividamento com o FMI e outros credores internacionais.

Com AI-5, general Médici e o recrudescimento da violência do Estado, o primeiro quinquênio dos anos 1970 foi marcado pela quase extinção dos grupos de resistência ao regime militar. Aos remanescentes não restaram muitas escolhas, além de partir para a guerrilha ou fugir do País e viver clandestinamente em algum canto seguro e bem distante daqui. E a crônica desse momento está implícita, com muita astúcia, até mesmo para driblar os censores, em Sangue no Cacto, assim como em todas as escolhas futuras de Baiano e Paulinho, pseudônimo adotado por Arnaud.

A dupla Baiano e Paulinho Cabeça de Poeta foi formada no início de 1973, quando Chico criou seu personagem e Arnaud também decidiu prestar homenagem aos emergentes Novos Baianos sugerindo o nome composto. Sarcástica e ao mesmo tempo reverente, a dupla provocava as idiossincrasias de Caetano e Gil que, um ano antes, haviam voltado do exílio em Londres. em texto memorial, onde relembra os dias de parceria com Arnaud, Chico esclarece: “O personagem baiano nasceu na época do exílio do Caetano, um período em que ele quase não podia falar, por isso o tipo Baiano era monossilábico”.

Apesar do aparente tom de deboche com os ícones máximos da MPB basta uma audição para concluir que a brincadeira era para lá de séria. Vô Batê Pa Tu, principal sucesso de Sangue no Cacto, é exemplar para a defesa dessa teoria. Escrita a quatro mãos por Arnaud e o Rei do Sambalanço, Orlandivo, a canção trata de tema dos mais pesados: a delação sob tortura e o clima de silêncio imposto pela censura. “O caso é esse: dizem que falam, que não sei o quê / Tá pra pintar ou tá pra acontecer / É papo de altas transações / Deduração, de um cara louco que dançou com tudo / Entregação com dedo de veludo / Com quem não tenho grandes ligações”, diz a letra.

Em Aldeia, o alvo é o Milagre Econômico: “Em cada rosto uma expressão / Em cada bucho a digestão / Um novo carro / Nova capa / Enquanto o velho me pede pão / O pão nosso de cada dia dão-nos hoje / Creditai nossas dívidas / Assim como não nos perdoam nossos credores”. No hilário baião Urubu tá Com Raiva do Boi (a ave necrófaga indigna-se com o bovino que não morre e, assim, a impossibilita de saciar a fome), única canção que não é de autoria de Chico e Arnaud (foi composta por Geraldo Nunes e Venâncio) a veia tragicômica do LP chega ao ápice no discurso de Baiano que, primeiro, divaga em tom apocalíptico “o medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição, os juros, o fim… / nada de novo / a gente de novo só tem os sete pecados industriais”, para, ao fim da terceira estrofe, com fina ironia, prosseguir “ai a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’ / e ele diz pra gente, ‘tudo bem!’ / não é um barato, Paulinho? / é um barato!”. Impiedoso, no final da canção, Baiano retorna para concluir: “Nada a dizer… Nada ou quase nada / O que tem é a fazer: tudo / Na rua, a obra do homem, o cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo… o suor batendo”. Como sugere a aparência “riponga” de Baiano e de Paulinho, o disco também versa sobre o desbunde e os estatutos da geração flower Power. Em Dendalei (corruptela de “dentro da lei”) a estrofe que sucede o primeiro refrão celebra o desprendimento e o hedonismo dos hippies: “Sou fã da viração do vento / Sou fã do livre pensamento / Sou fã da luz do nascimento / Sou fã aqui do melhor momento!”.

Letras a parte, a qualidade musical de de Sangue no Cacto é inquestionável. O álbum promove a fusão de ritmos brasileiros e estrangeiros com resultados distintos, e inscreve Chico e Arnaud como defensores do tal “som universal” tão perseguido pelos tropicalistas. Multifacetado, o LP reúne doses generosas de rock, samba, baião, xaxado, maracatu, bossa, choro, ciranda e soul. Infelizmente, a ficha técnica não foi creditada pela gravadora CID, mas a direção artística dessa pequena obra-prima ficou a cargo de um craque de nossa música, o compositor e instrumentista Durval Ferreira. Egresso da primeira geração da Bossa Nova, “Gato”, como Durval era tratado pelos amigos por conta de seus olhos azuis, liderou, ao lado de Eumir Deodato, o lendário combo de samba jazz Os Gatos, que lançou dois álbuns, hoje, raros e disputados por colecionadores, Os Gatos (1964) e Aquele Som dos Gatos (1965).

A parceria entre Chico e Arnaud ainda renderia mais três álbuns de Baiano, Paulinho e os Novos Caetanos (Baiano e Os Novos Caetanos, de 1975, A Volta, de 1982, e Sudamérica, de 1985). Além deles, ao lado de Arnaud Chico produziu, em 1975, outra pérola: o álbum Azambuja & Cia, que conta com o auxílio luxuoso do trio Azymuth. No hiato entre o álbum de 1975 e o de 1982, Chico lançou também, com a cantora baiana, Baiano e Amaralina, uma homenagem a Elba Ramalho. Título raro e obrigatório é Murituri, de 1974, álbum solo de Arnaud, dos mais primorosos, com a participação do guitar-hero tropicalista Lanny Gordin. Em 1976, colhendo os frutos da enorme projeção de seu personagem, Arnaud lançou também outra joia, o álbum O Som do Paulinho.

A propósito do sucessos de LP, no mesmo texto em que Chico explica a gênese do fenômeno Baiano e Os Novos Caetanos, o humorista dá boas pistas do quão grandiosa foi a dupla formada por ele e Arnaud: “Com o sucesso de vendas do LP, o senhor Harry Rozemblit, dono da companhia de discos CID, comprou três coberturas na avenida Delfim Moreira (localizada no Leblon, um dos mais caros endereços da zona sul carioca). O Eddie Barclay (dono do selo francês Barclay), na época, nos convidou para ir à Europa para participar do Miden, em Cannes, e eu não fui. Disse a ele que tinha que fazer um show em Curitiba. Que loucura a minha! Ele ficou sem entender. Como é que dois artistas esnobavam um dos maiores encontros da música internacional do planeta?!”. Para não deixar dúvidas sobre a projeção internacional de do álbum, Vô Batê Pá Tu ganhou, inclusive, uma deliciosa releitura da cantora sueca Sylvia Vretmar.

Como bem sabemos, infelizmente Chico e Arnaud já partiram: o Rei do Humor em março de 2012, em consequência das complicações de uma grave infecção pulmonar que o levou à falência múltipla de orgãos; e o saudoso Paulinho no carnaval de 2010, em um trágico acidente de barco no Tocantins. Mas o legado de alegria e reflexão deixado por essa dupla da pesada, para fechar com mais uma gíria setentona, é atemporal e atravessará décadas.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 23.1.2014

MAIS

Relativamente raros no Brasil, o primeiro LP da dupla e o álbum Azambuja & Cia serão relançados pela gravadora britânica Far Out Recordings. Recentemente, com o anúncio das reedições, o baterista Mamão revelou no Facebook que o registro teve a participação do Azymuth.

 

A pluralidade urbana na escrita de Cristhiano Aguiar

Cristhiano autografa exemplares do livro no lançamento na Banca Tatuí. Foto: Levi Fanan/Divulgação

*Por Rafael Mastrocinque

 

Doze anos depois do seu último livro ficcional, Cristhiano Aguiar, 37, volta o fluxo criativo às suas narrativas novamente. Os tempos de experiência acadêmica, curadoria de revistas literárias e outras ações culturais, levaram ao amadurecimento do escritor campinense até a sua mais engenhosa obra, Na Outra Margem, O Leviatã. Natanael, Faustine e Estevão representam a melancolia da capital paulista, que os forçam aos devaneios, até se chocarem com a brutalidade urbana que assola as suas vidas. Cristhiano trás em um fluxo refinado, contos entrelaçados que interpretam o mal dos trópicos modernos; a melancolia.

Na Outra Margem, O Leviatã se divide em sete contos, boa parte deles compostos pelos mesmos personagens, com histórias simultâneas caminhando lado a lado a catarse do protagonista de cada capítulo. Cristhiano Aguiar passou seis anos a procura do tom ideal para traduzir em sua narrativa, o mau estar existencial de cada indivíduo em meio a um cenário de hostilidade policial, que se prolonga pelas memórias de cada personagem. Os contos, em especial Teresa, trabalham as identidades de cada um a partir de suas cicatrizes familiares, com elementos mágicos que trazem belezas sublimes à narrativa. Artifício que só os grandes contistas possuem.

“Trancada no quarto, jogou toda a sua roupa no chão e observou, com desgosto, o próprio corpo. Considerou-se horrivelmente branca. Deitada na cama, manteve-se quieta e observou a caminhada da noite através do seu corpo sem manchas.”

Cristhiano ressalta as suas referências na poesia de Murilo Mendes, os contos de Alice Munro, Hilda Hilst e Borges como as raízes para o surgimento de Na Outra Margem, O Leviatã.

Formado em letras pela Universidade Federal de Pernambuco, Cristhiano conta o desafio de conciliar a sua vida acadêmica com a sua produção literária, hoje professor doutor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Depois do lançamento de seu primeiro livro de contos Ao Lado do Muro, do qual não se orgulha tanto, Cristhiano participou fielmente a projetos literários de pernambuco. Foi um dos editores da Revista VacaTussa, participou da Antologia Granta: Os melhores jovens escritores brasileiros em 2012, ano que começou os seus “tropeços e barrancos” nas palavras do autor, ao caminho de produzir o livro e outras obras paralelas, conforme foi equilibrando a tumultuosa vida acadêmica.

“Levantado, veio a pancada na cara, o cassetete nos rins. Nos desenhos animados, quando caímos, surgem uns passarinhos ou uma órbita de estrelas ao redor de nossa face, não é mesmo? Ali, só houve tempo para o chão” do capítulo Desaparecido, Cristhiano narra a repressão do morador de rua Caetano, perdido no meio de uma manifestação.

Autoritarismo

As personagens Faustine e Caetano são figuras antagônicas. Assombradas pela violência da polícia militar em posições sociais distintas. Na Outra Margem, O Leviatã apresenta um diálogo sobre as fissuras do autoritarismo a partir de Faustine, neta de um militar envolvido no Golpe de 64. A partir das memórias de infância, na fazenda de seu avô, Faustine trás em trechos as raízes mais profundas pela sua aversão ao autoritarismo.

Privilegiada, e protegida por um homem de confiança, a personagem se divide entre a ternura e horror aos últimos momentos que passou com o avô. “O ponto desse conto, ‘Os recém-nascidos’, e da trajetória de Faustine em especial, é o fato de que nosso país tem em suas instituições a marca do autoritarismo como um elemento articulador. Infelizmente, o nosso aparato jurídico, policial e político não escapa desse autoritarismo.”, explica Cristhiano.

Melancolia

Cristhiano Aguiar trás em sua nova obra o impacto dos contistas renomados. Suas personagens se deparam com o absurdo durante o cotidiano banal da cidade, deixando suas memórias e fraquezas translúcidas a partir de encontros. Uma desocupação no interior da Paraíba, a custódia de um boliviano pela polícia até o constrangimento de Lina e Estevão presos por horas no elevador de São Paulo. Sobre o lugar dos contistas brasileiros, Cristhiano inspira-se nos clássicos e entende a tarefa a ser cumprida pelos escritores atuais. “Cada tempo, cada cultura, exige de seus escritores e escritoras o desempenho de diferentes papéis. Em pleno 2018, voltamos ao olho do furacão de uma crise política aguda e cujas consequências são ainda imprevisíveis. Assim, sinto uma demanda por narrativas e posicionamentos públicos, por parte da autoria contemporânea, que possam dar conta de todo esse turbilhão.”

Depois de seu grande lançamento na Banca Tatuí, pelo selo independente Lote 42, Cristhiano guarda alguns novos títulos que foi trabalhando em paralelo ao Na Outra Margem, O Leviatã. Ele estará presente no dia 13 de abril, na SP-Arte para o seu próximo lançamento.

Assista ao vídeo em que Cristhiano narra um trecho do livro, cedido com exclusividade pela Lote 42:

A 11ª Bienal do Mercosul está corajosa em sua abordagem crítica

A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação
A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação

A arte contemporânea pode ser voz forte dos povos oprimidos? A 11ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, responde que sim. Notabiliza-se ao fazer uma mostra enxuta, simples na expografia, mas com tema e conceitos desafiadores, sem medo da censura que ronda as exposições brasileiras. Migração, racismo, territorialidade, pertencimento, resignificam o papel do negro na sociedade brasileira, a qual nunca o incorporou devidamente dentro do tecido social. Já na festa de abertura, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, a Orquestra de Câmara Fundarte dividiu o palco com cantores, atores, em performances contestadoras. Jovens artistas subiram ao palco com a faixa, Uma arte Inspira, Respira. Censura não, clara alusão à mostra Queer Museu, censurada e fechada no Centro Cultural Santander, no ano passado. Textos de Bertolt Brecht sobre liberdade também entraram em cena.

Reunidas em torno do tema O Triângulo Atlântico, com curadoria de Alfons Hug, que mora na África, os trabalhos sintetizam e denunciam a exploração e apagamento das nações africanas, tiradas à força de seus territórios, fato que até hoje reflete no drama de várias gerações que vivem sob desigualdades sociais no Brasil. O êxodo do Atlântico Negro provocou o processo de crioulização, promoveu o cruzamento de religiões, idiomas, tecnologias, culturas e artes. A mestiçagem, o sincretismo religioso também atuaram sobre a cultura indígena. Desde sempre esses povos são vítimas de uma invisibilidade proposital e só emergem com destaque na sociedade como nome de ruas, rios, comida, instrumentos, musicais.

O presidente da Bienal do Mercosul, Gilberto Schwartsmann, um médico sensível a essas questões é, sobretudo, um homem aberto que deu asas aos curadores, sem filtrar nada. “A meu ver, uma bienal tem que focar na qualidade artística da obra e não na quantidade delas ou dos artistas. O conjunto tem que ter densidade em todos os aspectos”.

Com esse suporte, os curadores Alfons Hug e Paula Borghi (adjunta) pensaram a Bienal em três espaços principais e outros periféricos. A mostra começa no Margs, com imersão pelo Oceano Atlântico, durante a diáspora e depois na escravidão. Se estende pelo Memorial do Rio Grande do Sul, onde pulsam as questões indígenas, e no Centro Cultural Santander com obras que pensam a cidade e o indivíduo. As performances estão espalhadas pelas praças da capital e por Pelotas, onde as atividades acontecem na Comunidade Quilombola do Areal e na Casa 6.

Sem se prender a artistas somente da região do Mercosul, esta edição reúne produção de praticamente todos os continentes. Os desenhos de Arjan Martins nascem diretamente sobre a superfície como demonstra seu painel de setenta e oito metros quadrados, um mapa com os pontos de chegada dos escravos no Brasil. Territorialidade também faz parte do universo do cubano J.Pavel Herrera que leva em conta a origem africana de Cuba, resignifica o conceito de Ilha, que só existe por causa do mar, um espaço simbólico de rota da escravidão e ao mesmo de tempo de transitoriedade, desejo de ir e vir. “O mar é um espaço de pertencimento, e também simbólico de perdas desde as travessias dos escravos até a simples tentativa de chegar ao outro lado. “É um território a ser olhado de um modo responsável”, recomenda Pavel Herrera.

A hipocrisia e a barbárie dos primórdios da colonização de Angola são o fio condutor da obra de Iris Buchholz Chocolate, alemã que vive naquele país. Suas peças são feitas com metais, cabelos artificiais trançados, penas de pavão, com os quais “borda” um manto imperial inspirado num paisagismo barroco, conivente com a escravidão. Sua pesquisa envolve questões em que pergunta: “Como nos distanciamos do passado quando carregamos o estigma de sermos os descendentes das vítimas e dos opressores?  O que o mundo esquece? E o que lembra? Somos as vítimas ou somos os culpados? Haverá certezas na vida? Como se conversa sobre temas que nunca são falados?

Para Gilberto Schwartsmann, o momento é oportuno para abordar todas as temáticas que envolvem a 11ª Bienal do Mercosul, que foi adiada por um ano e que teve a sorte de acontecer neste, quando se comemora os 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, o último país a abolir essa barbárie.

A 11ª edição se envolve com temas polêmicos e chega à administração de Porto Alegre, cidade onde existem cinco quilombos. No dia seguinte à inauguração da Bienal, o presidente se reuniu com lideranças das comunidades negras da cidade no Viaduto Abdias Nascimento, homenagem ao escritor e intelectual negro que cursou a Universidade de Nova York e é praticamente desconhecido na cidade. Como o estádio do Internacional de Porto Alegre fica próximo ao viaduto, os moradores o chamam “como gozação” de Mamzebe, time da República do Congo que eliminou o Internacional da Copa Mundial de Clubes, em 2010. Agora o viaduto tem placa com o nome de Abdias Nascimento, que foi colocada com a presença da esposa do escritor, a norte-americana Elisa Larking.

A 11ª Bienal do Mercosul dá um exemplo de sabedoria ao abordar questões tão polêmicas e pouco visíveis no circuito brasileiro de arte.

León Ferrari, por um mundo sem Inferno

León Ferrari, 'Sem título', 2008

Como entender o “fenômeno poético” León Ferrari? A resposta poderia vir de vozes como a do cineasta Fernando Birri, do escritor Julio Cortázar, dos críticos Andrea Giunta, Walter Zanini, da artista Regina Silveira. Alma tingida pelo desejo de justiça, a vida do artista argentino se insere nas conturbadas mudanças da contemporaneidade.

Com obra obrigatória nos compêndios da arte contemporânea, que oscila entre Eros e Tanatos, Ferrari tece sofisticado registro de ambos. Ferrari não é unanimidade, ele e sua obra já bateram e apanharam muito, o que fez dele um corajoso testemunho da destruição da substância das relações humanas. Ao longo de sessenta anos de arte, viveu no contrafluxo do sistema sendo empurrado aos infernos para emergir ainda mais forte. Ferrari observa o mundo e o transfigura em textos/gráficos que apontam dimensões submersas no cotidiano. Parte de sua obra compõe a retrospectiva León Ferrari, por um mundo sem Inferno na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, a partir de 10 de abril. No dia 26, estreia na sede nova-iorquina da galeria.

A mostra paulistana é um voo panorâmico que revela o “jovem” Ferrari como artista atemporal, homem que não perdeu tempo com críticas superficiais, rigoroso pesquisador da estética da linguagem, interpretando o universo como bem quis. Traços poéticos, dionisíacos e anticlericaispreenchem o espaço da mostra, com curadoria de Lisette Lagnado, que reuniu as obras junto com Anna Ferrari, arquiteta, neta do artista e diretora da Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo, cuja prioridade é a preservação, catalogação e divulgação da obra e dos arquivos, tanto de León quanto do seu pai, o arquiteto, pintor e fotógrafo Augusto César Ferrari (1871-1970). A retrospectiva já faz parte das ações da Fundação.

Mais de setenta trabalhos produzidos a lápis, tinta, aquarela, arames, xerografia, heliografias e colagens em Braille, realizados entre 1962 e 2009, revelam as preferências de Ferrari no campo artístico-político-cultural. Lisette destaca a figura pública do artista que se tornou parte indissociável de sua extensa e multifacetada produção. A curadora alerta sobre o conceito de ativismo, de insubordinação expresso em seus trabalhos. “Percebe-se logo que a chave do ’ativismo’ é redutora para explicar a monumentalidade de uma obra que compreende uma coleção extraordinária de reproduções recolhidas da história da arte”.

A obra de Ferrari ganha rumo na década de 1960, com as esculturas em arame, executadas em Milão e expostas na galeria Pater, interpretadas como “desenhos no espaço com mais luz do que o corpo, uma explosão cintilante”. Uma instintiva reação à literatura fez de Ferrari leitor de Borges, Sade, Gombrowicz, Cortázar e, nas escrituras com letras deformadas, parece recorrer a eles, como na série Carta a um General, de 1963. As escrituras revelam um artista inconformado com seu tempo. Luis Pérez-Oramas, no catálogo da mostra Alfabeto Enfurecido em que a obra de Ferrari dialoga com a de Mira Schendel, afirma que “as crenças ou descrenças de Ferrari passaram a incluir uma visão de textos sagrados judaico-cristãos como perversos chamados à exclusão, à tortura e ao crime.”

Tudo o que Ferrari produziu, em diversas mídias, demonstra sua aguçada criatividade e picardia crônica. Relecturas de la Bíblia, iniciada em 1983, consiste em colagens nas quais justapõe imagens da iconografia religiosa cristã ou da história da arte com imagens eróticas orientais. Em sua série de Brailles, perfura ilustrações e reproduções fotográficas de obras de artistas como Giotto e Michelangelo para escrever poemas ou passagens bíblicas na linguagem dos deficientes visuais. Ferrari se dizia influenciado pela cegueira de Borges, que escreveu poemas de amor que o encantaram. “Um poema de amor sobre a fotografia de uma mulher nua, dizia Borges, significa que você tem que acariciar a mulher para ler o que o poema diz. Foi aí que eu entendi a ideia”. Sob o efeito Borges, cria uma série de trabalhos sobrepostos às fotografias de Man Ray, reproduções de Kitagawa Utamaro e pinturas de Giotto e de Fra Angélico.

Compõe séries caligráficas como o emblemático Cuadro Escrito, de 1964, desenvolvido com texto complexo e gestual, no qual Ferrari descreve o que faria se soubesse pintar e incita reflexões diversas. Luis Camnitzer, crítico uruguaio de fino pensar, ressalta que a obra antecede as propostas comparáveis à do artista Joseph Kosuth. Já a crítica Mari Carmen Ramírez vê no trabalho “exemplo central de particular inflexão do conceitualismo latino-americano, concentrado mais nas relações com o contexto político da inserção do sujeito social ativo no circuito comunicacional do que nas propriedades empíricas da linguagem”. De 1980 a 1986, o artista trabalha planos sobre poliéster inserindo imagens de Letraset que emprega nas cópias heliográficas de grandes dimensões. Entre todas as obras, Ferrari se notabiliza por La Civilización Occidental y Cristiana, de 1965, em que coloca Cristo crucificado sobre um avião caça-bombardeio norte-americano, da Guerra do Vietnã. Muitos anos depois, a mesma peça foi exposta na mostra León Ferrari-Retrospectiva, curada por Andrea Giunta, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, e irrita o então arcebispo da cidade, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco. Seu texto incendeia a ira dos católicos que invadem as salas e destroem alguns trabalhos e a mostra é fechada. Três anos depois, em 2007, o mesmo trabalho, com curadoria de Robert Storr, recebe o Leão de Ouro, na 52ª Bienal Internacional de Veneza. La Civilización Occidental y Cristiana prova sua capacidade de resistência como agente transformador através do tempo.

Em 1977, Ferrari e sua família deixam a Argentina e mudam para o Brasil, com exceção de Ariel, seu filho mais jovem, que permanece em Buenos Aires e é morto pela repressão da ditadura militar. Para Ferrari, “a arte não se organiza a partir de formas e de estilos, mas por coincidências ideológicas que levam os artistas a agrupar-se, mesmo quando subescrevem diferentes tendências estéticas”. Com esse espírito, ao chegar ao Brasil, onde permanece por 15 anos, se fixa em São Paulo e se aproxima do grupo do Ateliê Aster, um lugar de trabalho e convívio que funcionava no bairro de Perdizes, dirigido por Walter Zanini, Regina Silveira, Donato Ferrari e Julio Plaza. Regina lembra que Ferrari foi visitá-la em 1978, interessado no que ela ensinava em litografia. “Os artistas, na época, faziam trabalhos com imagens fotográficas, foto-mecânicas, nas matrizes de pedra ou de metal. Ferrari queria aprender esse procedimento para fazer seus trabalhos de inversão de textos”. Durante sua vivência no Aster, ele inventou a exposição Gerox, uma mistura de gravura e xerox, da qual Mira Schendel participa. Sob a curadoria de Walter Zanini, Ferrari e Regina participam da 21ª Bienal de São Paulo, de 1981, quando o crítico dá a grande virada no conceito da Bienal. Elimina a amostragem das obras por países, como Veneza, e as expõem por analogia de linguagem, como ocorre até hoje. Ambos, dentro dessa novidade, põem obras em micro filme, “éramos os únicos representantes dessa linguagem”.

Na sua primeira fase em São Paulo, realiza xilografias, fotocópias e retoma as esculturas de arame, iniciadas em 1961, que Aracy Amaral chamou de “galáxias lineares”. Seu grande momento em São Paulo são as esculturas sonoras expostas na Pinacoteca de São Paulo, quando o crítico Fábio Magalhães, então diretor do museu, o apoia. Ao construir Berimbau, que emite som quando tocada, León decidi utilizar esculturas como instrumentos musicais que “dançam sua própria música”. O músico Caito Marcondes, a convite de Michelle Brill (Grupo Quebranto), grava e amplifica o som dessas esculturas em música para dança Tarot. Algumas dessas peças estão agora na mostra Esculturas para Ouvir, curada por Cauê Alves, no Museu Brasileiro da Escultura, MuBE.

León Ferrari recebe o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, em 2007. FOTO: Reprodução

Em 1991, Ferrari retorna à Argentina onde dá continuidade a um trabalho, intenso, corajoso e provocador, só interrompido em 2013, quando morre aos 93 anos. A atemporalidade de obra de León segue viva, movimentando museus e instituições pelo mundo. A Fundación Augusto y León Ferrari já está trabalhando o catálogo Raisonné de León com a coordenação de Andrea Wain, em parceria com o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, o Mamba. Neste ano, abre as portas do Taller Ferrari em Buenos Aires onde León trabalhou grande parte de sua vida. Nesta mesma direção, a Itália apresenta, em setembro próximo, uma retrospectiva da obra de seu pai Augusto Ferrari, na Academia Albertina de Torino.
Quase inimaginável, no ano passado, Palabras Ajenas, trabalho realizado durante a Guerra do Vietnã, com trechos de discursos de políticos, papas, Hitler, Cristo, entre outras 108 personalidades, montadas como diálogo entre eles, foi encenada na íntegra, com oito horas de duração junto à exposição sobre a obra no RedCAT Carl Arts dentro do projeto Pacific Standard Time, em Los Angeles. De lá, a ópera viajou para o Pérez Art Museum de Miami, onde pode ser vista até 14 de abril. Em paralelo O Museu Reina Sofia, em Madrid, prepara uma itinerância pela europa para 2020.

A vigência da obra de León é o testemunho de uma trajetória irretocável.

 

Bienal apaga fronteira entre artistas e curadores

GABRIEL PÉREZ-BARREIRO
Gabriel Pérez-Barreiro, espanhol, vive entre São Paulo e Nova York, EUA, é doutor em História e Teoria de Arte pela Universidade de Essex (Reino Unido) e mestre em História da Arte e Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Aberdeen (Reino Unido) - Foto: Bienal 2018

AProxíma Bienal de São Paulo promete esfacelar uma série de modelos há muito vigentes. A primeira das instituições a ter sua tradição arranhada é a do curador-autor. Desde pelo menos a 23ª edição do evento, a mostra se organiza em torno de um projeto pessoal, muitas vezes imposto de fora, de uma idéia diretora de um único responsável, que no máximo dividia as responsabilidades com uma equipe de assistentes. Incomodado com isso, Gabriel Pérez-Barreiro resolveu inverter um pouco as coisas. Ele diluiu em seu projeto não apenas a ideia de conceito norteador, adotando como mote a noção bastante aberta da “Afinidade Afetiva”, mas sobretudo horizontalizando de forma radical não apenas a concepção, mas a exposição como um todo, ao convidar sete artistas para assumirem, ao seu lado, a curadoria do evento.

Em outras palavras, elimina-se a clássica fronteira entre curadores e artistas. “Acho que esses dois termos são equivalentes”, faz questão de esclarecer Pérez-Barreiro. “As imposições são poucas e são de ordem apenas burocrática, relativas a questões como orçamento – igual para todos –, ter de inserir sua própria obra na exposição e não interferir na ‘ilha’ do outro”, explica. Ilha é como estão sido chamados os núcleos concebidos por Alejandro Cesarco, Antonio Ballester Moreno, Claudia Fontes, Mamma Anderson, Sofia Borges, Waltercio Caldas e Wura-Natasha Ogunji. De diferentes gerações e origens, os caminhos trilhados por cada um deles são únicos e diversificados.

Enquanto Waltercio Caldas tem lidado com obras que já existem, propondo um trabalho mais próximo de uma curadoria de museu (em maneira semelhante ao que já havia desenvolvido na 6ª Bienal do Mercosul, também curada por Pérez-Barreiro, em 2007), Wura Ogunji e Claudia Fontes – que já tem uma tradição de trabalho em rede – se voltaram para a comunidade de artistas, horizontalizando o sistema e incorporando trabalhos novos, comissionados especialmente para a 33ª Bienal.

“São sete aulas de curadoria”, diz. “Olhei para eles mais pela diferença, pela diversidade formal e de processo, do que pela semelhança”, acrescenta o curador. “É uma herança do modernismo pensar que que existam versões corretas e incorretas”, explica ele. A necessidade de expandir seus horizontes de forma não tão controlada e de assumir riscos que o tirassem da posição confortável de repetir o que já sabe fazer levou Pérez-Barreiro a evitar fazer mais do mesmo.

Dos sete curadores-artistas convidados, conhecia anteriormente apenas dois deles (Waltercio Caldas e Alejandro Cesarco). Outras regras que o curador estabeleceu para suas escolhas foram a do equilíbrio entre os gêneros e o respeito a uma certa balança geopolítica tradicionalmente seguida para a Bienal, de garantir uma maior representatividade de artistas brasileiros e latino-americanos (com cada um desses grupos correspondendo a cerca de um terço da mostra). Não necessariamente os co-curadores se aterão a esses critérios. Entremeando cada uma das sete ilhas de cada um dos artistas-curadores, o visitante encontrará as escolhas do próprio Pérez-Barreiro. A divulgação dos nomes finais deve ocorrer em breve, mas ele adianta que sua seleção é extremamente ampla, indo de um filme inédito a algumas pontuações históricas. Dentre elas, destacam-se obras da série Césio, de Siron Franco. Criado em 1987, o trabalho faz uma ácida crítica ao acidente radioativo ocorrido em Goiânia pouco tempo antes. No total, a Bienal terá cerca de 80 participantes, número que ele considera satisfatório para conseguir viabilizar uma exposição leve, sem que o visitante se sinta exausto após a visita.

A ideia é exercitar no público o exercício do olhar, que ele possa realizar suas próprias escolhas, entender-se afetivamente e não racionalmente com a obra de arte. O título escolhido, que mescla referências a Goethe e Mário Pedrosa – sobre quem Pérez-Barreiro acaba de fazer uma exposição, no museu espanhol Reina Sofía –, reitera esse caminho. A noção de atenção, de interação com os trabalhos, também é essencial nesse projeto. “O que mudou radicalmente nos últimos anos é a introdução das redes sociais, a invasão da tecnologia na vida das pessoas. Isso nos leva a pensar em como criar a possibilidade de um espaço autêntico, de pensamento sobre a realidade que nos envolve e a arte é um espaço altamente privilegiado para isso, porque fala de relação, fala da ambiguidade”, explica. Esse desenvolver do foco, de troca entre o espectador e a obra, ganha um peso grande no projeto educativo. Aliás, este também apresenta uma mudança de foco em relação às outras edições, indica Pérez-Barreiro, na medida em que privilegiará um material com uma vida mais longa, sem vínculo estrito com o conteúdo da Bienal para que possa tornar-se um instrumento mais amplo e despertar a consciência da própria atenção para além dos limites temporais do evento.

No último dia 20 de março, a Bienal divulgou oficialmente o nome de 12 novos expositores que integram a lista da Bienal de Arte 2018

Hilma af Klint: Uma artista adiante de seu tempo

Hilma af Klint, 'The Ten Largest, No. 3, Youth, Group IV', 1907.

Hilma af Klint é uma artista excepcional. Nas várias acepções do termo. Sua obra não é apenas seminal, antecipando em vários anos o início do abstracionismo, como apresenta uma qualidade estética rara, aliando sutileza formal e cromática a uma intensa espiritualidade. A isso se soma sua história singular. Formada na Academia Real de Belas Artes da Suécia (a segunda do mundo a aceitar alunas mulheres), em 1887, foi uma artista de relativo sucesso, dedicando-se à paisagem, ao desenho de botânica e às ilustrações de livros, revistas e jornais. Tinha, ademais, um interesse profundo pela ciência e pela religiosidade, o que acaba a levando pouco a pouco ao trabalho de fôlego que pode ser visto atualmente na Pinacoteca do Estado.

A mostra, que permanece na Pinacoteca de São Paulo até meados de julho, traz pela primeira vez à América Latina algumas das séries mais emblemáticas feitas por Hilma nas primeiras décadas do século XX e que foram escondidas do público por quase um século – primeiro por ordem da artista, que assim o determinou em testamento, e, em seguida, pela dificuldade do sistema de arte de compreender e absorver sua obra. Afinal, não deixa de ser surpreendente que uma mulher, imbuída inicialmente por uma missão de cunho espiritual, tenha antecipado de maneira tão evidente pesquisas que viriam a tona pelas mãos de mestres consagrados como Kandinsky e Mondrian, eles também interessados pelo plano metafísico.

Logo na entrada da mostra, o visitante é recebido por 10 pinturas gigantescas, de quase 3,5 metros de altura, que representam as dez idades da vida humana, da infância à velhice. O conjunto tem uma imponência e um forte poder de sedução, com suas sutilezas cromáticas e abstracionismo orgânico muito particular. Foram realizadas num fôlego só, ao longo de 40 dias, em 1907, o que dá uma média de quatro dias para a confecção de cada uma delas. O conjunto faz parte de uma ampla pesquisa desenvolvida por Hilma seguindo instruções que lhe foram dadas por entidades externas, que lhe pedem que faça um ciclo de pinturas para um templo. Ela é, nas palavras do curador Jochen Volz, “das primeiras e mais monumentais obras de arte abstrata do mundo ocidental”.

A majestuosidade das “Dez maiores”, como são chamadas, não sombreiam os outros grupos de trabalhos selecionados na vasta produção de Hilma. O visitante descobre, sala a sala, como o trabalho desdobra-se em diferentes campos de pesquisa, desde uma investigação sobre o átomo, até uma sublime representação das religiões do mundo a partir de pequenas variações compositivas a partir de uma simples estrutura circular.
Esse lado místico, fundamental em sua trajetória, se deu de maneira diferenciada ao longo do tempo. Das primeiras experiências mediúnicas com um grupo de outras quatro amigas, intitulado De Fem (As Cinco) – representadas na exposição por um conjunto amplo de desenhos e escrita automáticos, técnica que adquiriria status artístico apenas na década de 1920, com as experiências surrealistas – até experiências mais tardias, como a série “Da observação de flores e árvores”, de 1922 (uma impressionante integração entre o visível, o energético e uma ordem espiritual), há uma mudança de tônica. As vozes antes externas, atribuídas a “mestres elevados” tornam-se pouco a pouco internas.

Especialistas atribuem essa tônica menos ligada ao espiritismo e mais anímica à aproximação de Hilma com Rudolf Steiner, fundador da antroposofia. Ele é o único a receber autorização para ver, em 1908, os trabalhos que ela vinha desenvolvendo e se encanta com a série “Caos Primordial”. E a relação entre eles se mantém ao longo do tempo. Nos anos 1920, após a morte da mãe, ela passa a visitar com frequência o Goethearum, sede do movimento antroposófico, onde se dedica a estudar a teoria das cores, de Goethe, reeditada por Steiner. Como explica Volz, “Se tivesse mostrado isso na sua época, muito mais machista, provavelmente seria declarada um caso clínico”.

Tal espanto com a ousadia de sua obra, que se quer sempre totalizante, buscando a unidade de campos tão potentes como a ciência, a religião e a arte, não é algo exclusivo do início do século XX. Em 1987, por ocasião da exposição de arte abstrata em Los Angeles na qual sua obra foi mostrada pela primeira vez, um crítico chegou a tentar recoloca-la novamente no espaço secundário – e invisível – ao qual as mulheres eram relegadas, invertendo a seu favor o discurso em prol da igualdade, ao afirmar que ela “nunca teria recebido esse tratamento intumescido se não se tratasse de uma mulher”.

Apesar de trabalhar de forma intermitente, deixou mais de 26 mil páginas manuscritas e datilografas, nas quais esclarece a organização interna de seu trabalho, procura explicar e organizar a infinidade de simbologias presentes em sua obra, formadas por um entrecruzamento complexo entre formas geométricas, símbolos, letras e cores. E também um conjunto de 1,2 mil pinturas, desenhos e aquarelas. Morreu aos 82 anos, vítima de um atropelamento, e seu herdeiro, o sobrinho, respeitou seu desejo expresso em orçamento de manter guardadas por mais 20 anos suas obras não-figurativas. “Não há dúvida de que ela tinha absoluta ciência de seu próprio tempo, do vigor de suas imagens e do potencial destas para o futuro. Ela tinha muito claro o que fazia”, explica Volz, lembrando que mesmo depois da abertura das caixas, foram necessárias mais duas décadas para que seu trabalho começasse a adquirir visibilidade. Apenas em 2013, é realizada uma retrospectiva itinerante de sua obra, começando pelo Moderna Museet, de Estocolmo.

Para a mostra de São Paulo, foram escolhidas 130 obras, enfatizando a estrutura serial adotada pela artista, rara em sua época. Algumas delas nunca foram mostradas anteriormente. Segundo Volz, a presença da obra de Hilma na Pinacoteca ajuda a sublinhar os diálogos muito fortes entre sua obra e a arte brasileira, como um embate muito forte entre a forma geométrica e orgânica, a força do sincretismo religioso e a ideia de universalidade.

sp-Arte: Ver, conhecer e (por que não?) comprar

Douglas Gordon, Self Portrait of You and Me (Audrey Hepburn) 2010. Burned Print Size framed: 26,9 x 21, 6 x 4 cm.

A SP-Arte 2018, que se realiza todo ano na segunda semana de abril, no Pavilhão da Bienal de São Paulo, promete confirmar o tradicional encontro de agentes do circuito da arte nacional e internacional na cidade. O evento terá a presença de 131 galerias, apresentações solo e espaços curados. Pela terceira vez, haverá um espaço dedicado ao design, com mais de 33 galerias presentes.

A cidade se prepara para aberturas diárias de exposições em galerias, percursos noturnos de visitas guiadas no Gallery Night, lançamentos de livros, seminários e debates em museus.

Já no sábado, 7 de abril, a Galeria ARTE57 abre Quimera, primeira individual da artista Fernanda Feher.

O Instituto Tomie Ohtake organiza uma tarde completa de atividades em torno de Turbulência, com visitas guiadas de Paulo Pasta e Paulo Miyada na exposição de Cecily Brown, conversas com artistas brasileiros e estrangeiros que visitam a cidade especialmente nessa semana e uma performance inédita da artista Bené Fonteles.

No dia 9, às 20h, a Galeria Estação organiza uma visita à exposição de Teodoro Dias, que fala sobre sua carreira, seu processo criativo e suas novas obras, feitas para a exposição em cartaz.

Na terça, 10, a Galeria Nara Roesler abre a exposição León Ferrari: por um mundo sem Inferno, com curadoria de Lisette Lagnado. Na ocasião, a galeria apresenta para o público obras do artista, que passa a formar parte do seu elenco. Como parte da programação, a galeria organiza na quinta feira, 12, uma conferência no MAM, às 19h, com a presença da artista Regina Silveira, Catherine David (Centre Pompidou), a curadora argentina Vitoria Noorthonn (Museu de Arte Moderna da Argentina) e o curador mexicano Pablo León de la Barra.

No mesmo dia, a Galeria Vermelho, apresenta o trabalho de Mauricio Dias & Walter Riedweg, que se dedicam à obra do norte-americano Charles Hovland, mais especificamente com as imagens que o fotógrafo realizou a partir de seus anúncios em jornais nova-iorquinos nos anos 1970 e 1980. Neste projeto, ele convidava pessoas comuns a realizarem suas fantasias sexuais para sua câmera.

Das inúmeras galerias, duas, nascidas em 2017, apresentam-se pela primeira vez na SP-Arte. A Galeria Adelina, do empresário Fábio Luchetti, possui espaço expositivo, de cursos e de ateliês. Ela abre, também na semana, uma exposição do coletivo DOMA. A outra estreante é a Galeria Houssein Jarouche que, segundo seu diretor e fundador, o empresário que dá nome ao investimento, será o primeiro espaço no Brasil dedicado às práticas da Pop Art e suas reverberações na arte contemporânea.

Já a tradicional e habitué galeria baiana Paulo Darzé investe este ano na obra de Rubem Valentim, nascido na Sé, em Salvador.

Seu repertório, de base geométrica, aponta para um sincretismo, tendo em vista que sua família era de origem católica, mas ele se aventurou pelo mundo da Umbanda e do Candomblé. Amigos de Rubem, falecido em 1991, se uniram para criar uma organização com seu nome. O Instituto Rubem Valentim foi inaugurado em 2017, em Brasília, com esforços de Celso Albano, Paulo Darzé, Jonas Bergamim, Carlos Dale e Antônio Almeida e do crítico Frederico de Morais, dentre outros. “Era uma vontade antiga de Rubem. Ele tentou fazer isso nos anos 70, mas não conseguiu”, conta Paulo Darzé.

Fernando Oliva, curador do MASP e um dos participantes da Conferência Ecos do Atlântico Sul, que o Goethe-Institut realiza em Salvador, também em abril, comenta que a obra de Valentim será resgatada pelo MASP, no segundo semestre, pelas referências que estabeleceu com o universo da matriz cultural e visual afro-brasileira, especialmente no que diz respeito à religiosidade. Ele aponta para os objetos, ferramentas de culto, estruturas de altares e símbolos de deuses representados por Valentim.

“Nas obras de Valentim, há uma interpenetração muito sutil e precisa entre a estrutura de base construtiva, a iconografia e o colorido herdados do universo mágico e religioso afro-brasileiro”.

Na segunda edição de Repertório, espaço curado por Jacopo Crivelli Visconti, o objetivo foi encontrar um recorte artístico cronológico focando em trabalhos produzidos durante a década de 1980. Na escolha curatorial, estarão presentes as galerias brasileiras Jaqueline Martins, Almeida e Dale (com Ione Saldanha) e a galeria italiana Contínua.

Durante a feira, será conhecido o vencedor do Prêmio de Residência da SP-Arte cujos finalistas neste ano são: Daniel Jablonski, Janaína Torres Galeria; Daniel Lie, Casa Triângulo; Igor Vidor, Galeria Leme e Luciana Caravello Galeria; Laura Belém, Athena Contemporânea, e Marcelo Cidade, Galeria Vermelho. Em 2018, o programa oferece uma estadia de três meses na Delfina Foundation, uma das principais organizações do gênero, sediada em Londres.

Neste ano, o leitor e o visitante podem pesquisar o elenco de artistas e o conjunto das obras, assim como a programação completa, no site da feira www.sp-arte.com.

Iconografia e insubordinação

León Ferrari, Madonna + Infierno del Indio Japari, 1993.

No dia do fechamento desta edição, ARTE!Brasileiros e o mundo se comoveram com o brutal assassinato, uma clara execução, de Marielle Franco, mulher, negra, militante pelos direitos humanos, vereadora do Rio de Janeiro, representante de mais de 56.000 eleitores, e seu motorista Anderson Gomes.

Num verdadeiro ato de provocação à vigência de um regime supostamente livre, milicianos e quem os financiam matam impunemente tentando calar as vozes de quem ousa defender direitos sociais: a saúde, a educação, a cultura, escolher como se vestir ou a quem amar, seja mulher, homem, trans ou papagaio.

Com a ascensão de Trump nos EUA, o impeachment no Brasil e outros movimentos contrários a vida democrática em vários países, “se agudizaram deliberadamente ondas de racismo, xenofobia e sexismo que estavam latentes mas não legitimadas”, diz o filósofo e professor americano Noam Chomsky, um dos pensadores mais importantes na contemporaneidade, no seu último livro Réquiem para o sonho Americano, da editora Bertrand Brasil.

Na sua opinião, a cada vez maior concentração e polarização econômica criada pelo neoliberalismo produziu uma depreciação da vida cotidiana na maioria dos povos nos diferentes continentes. Uma certa depressão e uma falta de esperança do que se pode mudar.

Porém, independentemente da necessidade de encontrar as bandeiras certas para uma concentração de forças que permitam mudanças profundas e estruturais por uma sociedade mais justa, toda e qualquer intervenção de artistas e agentes culturais a serviço da reflexão sobre as inquietações e o sofrimento contemporâneo são fundamentais.

Capa da edição 42 da Revista ARTE! Brasileiros
León Ferrari, colagem da série ‘Homenaje a Madonna’, ‘Madonna + Infierno Del Indio Japari, 1993. Coleção particular. Reprodução fotográfica da obra por- ARTE!Brasileiros.

Esta edição – você tem acesso a todas as materias no PaginaB! – traz inúmeros exemplos de instituições culturais, artistas modernos, contemporâneos e fotógrafos, que centraram suas pesquisas, imagens, esculturas e projetos retratando como, numa história que se repete, o poder de setores conservadores, econômicos e políticos tenta sujeitar os cidadãos e sua liberdade de expressão.

Na materia de capa, por exemplo,  León Ferrari: por um mundo sem Inferno, título da mostra que abre em abril na Galeria Nara Roesler com curadoria de Lisette Lanhado, apresentamos o trabalho incansável de um artista conceitual, transgressor, que colocou seu trabalho desde os anos 60 a serviço da discussão dos valores éticos e estéticos dominantes. Questionou com ironía e humor o Poder, político e religioso, e reverenciou a liberdade da mulher muito antes que as discussões de gênero viessem a tona nos anos 80.

Assistir a beleza de seus trabalhos ou chocar-nos com eles nos permite tomar ar e seguir adiante.