Fotografia de Edgar Kanaykõ Xakriabá que integraria a exposição coletiva da série "Histórias Brasileiras", cancelada pelo Masp. Foto: Cortesia do artista
Fotografia de Edgar Kanaykõ Xakriabá que integraria a exposição coletiva da série "Histórias Brasileiras", cancelada pelo Masp. Foto: Cortesia do artista

*Alguns dias após a publicação deste artigo, Sandra Benites, curadora adjunta do Masp e primeira profissional indígena na curadoria de um museu brasileiro, pediu demissão. “Não faz sentido que eu continue sem poder ampliar o debate”, declarou Sandra à Folha de São Paulo. Leia a seguir o artigo de Jotabê Medeiros.

O Museu de Arte de São Paulo. Foto: Marcelo Valente.
O Museu de Arte de São Paulo. Foto: Marcelo Valente.

O que é fundamental na concepção de um museu moderno? A preservação dos cânones burocráticos e administrativos ou a criação de novas instâncias ágeis o suficiente para o acompanhamento da realidade, do tempo presente, das demandas urgentes? O Museu de Arte de São Paulo (Masp) parece viver aguda e esquizofrenicamente essa questão.

Em poucos dias, o museu foi denunciado em público por dois casos de “censura burocrática”, expressão que talvez seja um eufemismo mal ajambrado para descrever o que de fato se passou. Há alguns dias, o museu decretou a suspensão de uma exposição coletiva da série Histórias Brasileiras, que abriria em julho, por conta da declarada impossibilidade (para não dizer a real: a falta de vontade) de exibir uma série de fotos sobre o Movimento Sem Terra (MST). Antes disso, em fevereiro, o museu foi denunciado por cancelar quase de véspera o lançamento de um livro de Guilherme Boulos, liderança do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

A exposição cancelada tinha a curadoria de duas profissionais experientes e com alto nível de consciência política: Sandra Benites, a primeira indígena a se tornar curadora-adjunta  do museu, e a crítica e ensaísta Clarissa Diniz, que foi assistente de Paulo Herkenhoff. O argumento para o cancelamento foi a falta de tempo hábil para a contratação e cessão do material fotográfico a ser exibido (curiosamente, justo o recorte mais incômodo para os atuais ocupantes do poder).

Avisadas da suspensão de parte do seu núcleo por “problemas de cronograma”, as curadoras resolveram cancelar toda a exposição. Elas dizem não ter sido avisadas, nem pela produção nem pela curadoria do museu, sobre o suposto prazo que teriam descumprido (leia o esclarecimento oficial publicado pelas curadoras). O Masp, por seu lado, informou que os prazos constavam em contrato. Conforme nota oficial do museu, a instituição afirma que buscou flexibilizar os prazos para solicitação de empréstimo de obras bem como seus licenciamentos, limitados a seis meses (para instituições nacionais) e quatro meses (para galerias e coleções particulares nacionais), e aceitou um pedido de inclusão de cartazes e documentos do acervo do MST, “o que descarta a hipótese de censura”.

Mas não é assim que as curadoras enxergam a decisão. “Impedidas de levar adiante nosso acordo com o Movimento Sem Terra, seus fotógrafos (João Zinclar e André Vilaron) e Edgar Kanaykõ como sanção a um erro que sabemos não ter cometido, sentimo-nos desrespeitadas, injustiçadas e instadas, em consequência de tal decisão, a trair a confiança deste que não é só o maior movimento social do Brasil, como também é a coluna vertebral do Retomadas“, escreveram as curadoras em um comunicado privado (endereçado primordialmente a artistas, ativistas, cineastas, fotógrafos, movimentos sociais, carnavalescos, escritores, atrizes, linguistas, colecionadores, instituições e universidades que integraram ou se juntaram de algum modo ao projeto).

“Aceitar a exclusão das imagens das retomadas em nome da permanência do núcleo nos levaria a ser desleais com os sujeitos e movimentos envolvidos na nossa curadoria – contradição que não estamos dispostas a negociar por não concordar com tamanha irresponsabilidade”, prosseguiram. Indagada na semana passada pela reportagem da arte!brasileiros sobre se a decisão do Masp não configura censura, a curadora Clarissa Diniz declarou: “Eu acho que impedir a representação completa das Retomadas é, em si, uma posição política”.

Ato contínuo, o Museu de Arte de São Paulo retirou de seu site oficial os nomes de Sandra Benites e Clarissa Diniz da sinopse da série Histórias Brasileiras, alertando que prossegue o programa com outros sete núcleos. O segmento é definido da seguinte forma: “A perspectiva privilegiada não é tanto a da história da arte, mas a das histórias sociais ou políticas, íntimas ou privadas, dos costumes e do cotidiano, a partir da cultura visual. Nesse sentido, a mostra tem também um caráter mais polifônico e fragmentado, fugindo de uma decisão definitiva, canônica ou totalizante”.

Ou seja: a decisão do cancelamento parece ser a negação de todo esse princípio. A sequência desses fatos no Masp é indicativa de um surto perigoso. Asfixiados pela burocracia do governo federal (que por sua vez tem um propósito único e assumido: o da perseguição política e ideológica), os museus brasileiros parecem não atentar para o fato de que não são propriedade de um establishment político, mas abrigam o próprio conceito de Nação.

Para negar a cessão de seu auditório a quatro dias do lançamento do livro Sem Medo do Futuro (Editora Contracorrrente), de autoria de Guilherme Boulos (PSOL-SP), que é pré-candidato a deputado federal, o Masp alegou que seu estatuto proíbe a realização de “manifestações de caráter político e/ou religioso”. Ora, toda a arte de seu acervo (adquirido, diga-se, com recursos públicos, no momento em que foi salvo de sequestro judicial por intervenção do então presidente Juscelino Kubitscheck) é de algum modo política, social ou religiosa, desde A Tentação de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, do século 15, passando por Renoir, Toulouse-Lautrec, Modigliani e Manet. Embora ressalte que não há ligação entre a suspensão da exposição Retomadas com o veto ao lançamento de Boulos, é impossível não relacioná-los.

Essa metástase de uma censura escorada em argumentos burocráticos, de frágil argumentação teórica e legal, se espalha rápida e preocupantemente desde o poder central do Brasil. Em dezembro, o Museu da República mandou interromper o trabalho de catalogação e preparação da Coleção Nosso Sagrado, um acervo secular composto por 519 peças de arte afrobrasileira que ficou mais de um século sob a guarda da polícia do Rio de Janeiro (criminalizado devido à intolerância religiosa e racial). A ordem de interromper o trabalho e “engavetar” todo o material veio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão do governo federal, e partiu de um extremista religioso que ocupa cargo de relevo na alta burocracia dos museus.

É preciso lembrar a essas instituições que o alinhamento circunstancial e oportunista de um museu a um ideário de plantão, mesmo que seja por motivos de saúde financeira, tem custos definitivos. A presença do museu na sociedade é estruturante, tem repercussões de natureza formativa, educativa, emancipadora.

SAIBA MAIS: leia nota assinada pelo Acervo João Zinclar, o Coletivo de Arquivo e Memória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pela Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Clique aqui


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