Alepo
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo. FOTO: EBC

*Por João Alberto Alves Amorim

Eu poderia começar este texto apontando a proximidade do final do ano, período em que, mais uma vez, nos rendemos aos mais variados festins consumistas em que se converteram estes dias, ou, ainda, qualquer outra referência que fisgasse a sua atenção focada nos temas natalinos e festivos.

Também poderia lançar mão dos tags mais comuns e dos temas e chavões mais difundidos – de modo consciente ou inconsciente –, através das redes sociais, com motes natalinos ou de reflexões de final de ano, de anseios de paz, de prosperidade e de alegria. Mas, vou começar este texto de outra forma, sugerindo uma reflexão: Você sabe quem você é? Ou, de modo mais simples e direto, quem é você? A pergunta, apesar do que possa parecer, não é simples, nem fácil. Ao contrário. Você verá que é uma questão extremamente incômoda. Principalmente se eu te disser que a resposta deve ser dada sem que sejam feitas referências ao seu nome, sua ascendência familiar, sua profissão, seu endereço, seus atributos físicos ou qualquer outra característica extrínseca.

Geralmente, é a primeira pergunta que dirijo a meus alunos, quando começo a explicar as questões fundamentais da teoria dos direitos humanos, como o conceito de dignidade da pessoa humana. Deixo os estudantes refletirem por alguns minutos e, em seguida, pergunto a eles (e o faço a você, agora) se conhecem a letra da música do Chico Buarque Geni e o Zeppelin (a letra toda, claro, e não apenas o refrão). Você conhece? Na maioria das vezes, a resposta a estas duas provocações é o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que revela o incômodo de quem se cala, que o deixa inquieto, como se algo lhe revirasse as entranhas.

Basicamente, o mote desta primeira aula é induzir, ainda que apenas naquele momento, o despertar da empatia. É criar as condições para que aquelas pessoas, através destas pequenas induções (e, claro, do restante do contexto da aula) despertem da indiferença, sintam a fragilidade da segurança que pensam disfrutar, se coloquem no lugar daqueles a que tão facilmente nos referimos, quando precisamos exemplificar condições desumanas de existência, e percebam, por exemplo, a onipresente hipocrisia social e as nuances dos discursos e promessas carregadas através dela, como no que fizeram à coitada da Geni. O núcleo-verbal é exatamente este: despertar.

Cotidianamente somos entorpecidos por um sistema cultural de massa que, em sua quase totalidade, produz alienação mascarada de informação, aculturação disfarçada de erudição e conservadorismo e estreitamento intelectual maquiada de liberdade e amplitude de horizontes. Justamente diante deste ponto, volto a te perguntar: Quem é você?

Não é raro escutarmos que a causa para uma infinidade de problemas e questões sociais sérias no Brasil é a educação. Mais precisamente, a falta dela. Por um lado, é inegável que o Brasil é um país profundamente dividido e desigual em termos de educação (ou da falta dela). A maioria esmagadora da população não tem acesso a educação de qualidade e a minoria que tem não sabe lá muito bem, não quer saber ou tem raiva de quem saiba, o que fazer com ela.

Mas, apesar da falta de educação ser a usual suspect mais comum e frequente nas rodas de conversa, o Brasil não é um país que valoriza, preza ou investe na educação. Nem parcela considerável da população – apesar do belo discurso das rodas de conversa – está comprometida com ou desejosa da melhoria da educação de verdade e, principalmente, dos sacrifícios e esforços implicados em tal evolução. E, ainda que assim não fosse, será que o problema é tão simples quanto a tão alardeada “falta de educação”? Mesmo? Será que a questão não é um pouco mais profunda do que isso?

Campo de Refugiados Ain Al-Hilweh, no Líbano . FOTO: UNHCR

 

Você, que me lê agora e teve acesso a educação, ao sistema educacional, tem acesso a fontes variadas de informação, ou seja, que integra a parcela pequena da população que teve acesso à educação, principalmente em nível universitário, o que tem feito para, efetivamente, melhorar as questões sociais do país, de sua cidade, do seu bairro, de sua rua, do seu prédio (ou, ao menos, não cometer os mesmos “erros” da maioria que não teve acesso à “educação”)?

Somos um país que, na verdade, não valoriza a educação. Ao menos, não a educação real, que empodera, que liberta. Preferimos que as coisas nos cheguem de modo fácil. Sonhamos com o sucesso e com a glória, com a riqueza e com o luxo, mas queremos simplesmente que tais coisas aconteçam, como ganhar na loteria ou ser descoberto por um produtor desconhecido enquanto estamos sentados numa praça ou num bar. Ainda que tenhamos a consciência da necessidade de nos educarmos de forma libertadora, acabamos sendo vítimas de um sistema educacional praticamente onipresente que formata e adestra, ao invés de ensinar, que estreita a visão e o pensamento, ao invés de ampliá-lo.

Obviamente que existem exceções a esta regra geral. Mas, são pouquíssimas e, praticamente, inacessíveis à quase totalidade dos mortais deste país. Ah, uma coisa, já conseguiu responder à pergunta que lancei no começo deste texto? Não?  Dentro deste contexto cultural de aversão não assumida pela educação, se encontra a questão da difusão da informação e seu processamento.

Por muitos séculos, uma das formas mais comuns e eficientes que a igreja católica e os reis usaram para difundir seus ensinamentos e suas versões dos fatos, sobretudo para a população iletrada, foi a pintura. Aqueles que não sabiam ler e escrever, que não conseguiam compreender as missas em latim, contemplavam, maravilhados, as belíssimas imagens e as prodigiosas explicações dos padres e demais incumbidos de espalhar a versão desejada dos fatos pelos donos do poder.

Através de representações imagéticas, os mais simples e iletrados poderiam compreender os mistérios da fé, as razões de seus sofrimentos e provações e, principalmente, o destino dos pecadores, dos que se revoltavam contra a vontade de Deus. Não é à toa que duas das maiores virtudes que um pobre servo, explorado, escravizado, sem qualquer perspectiva diante do sofrimento, deve cultivar são a humildade e a resignação. Aceitar a condição social, sofrer os martírios desta vida, para ganhar, por esta expiação, o reino dos céus, sempre foi uma poderosa mensagem de controle social, propagandeada até os dias atuais, pelas mais variadas formas.

No século XX, tivemos o rádio e a televisão, sobretudo para a massa de pessoas que, ou não sabiam nem ler nem escrever, ou, sabendo, simplesmente não se dispunham a tanto. Somos hoje no Brasil, provavelmente, a quarta geração de pessoas criadas em frente à televisão. Independentemente se nascido em pequenos bolsões de tranquilidade ou em grandes áreas sem tranquilidade alguma, somos uma sociedade que, em sua grande maioria, acostumou-se a ser amplamente entretida e “educada” pela televisão.

E, hoje, no século XXI, temos também a internet! Esta ferramenta espetacular que nos permite, literalmente, viver em um mundo que vira de ponta a cabeça as noções de tempo e espaço, que tem um potencial enorme de igualar desigualdades e promover verdadeiramente a inclusão democrática. Mas, que, também, tem seus mecanismos de coleta de metadados, que gravam nossos gostos, nossas preferências, nossos afetos, nossas sensibilidades, e as convertem em ofertas, notícias, informações, imagens e perfis selecionados para nos “agradar”.

Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado.

Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado. Sendo isso verdade ou não, é fato que vivemos numa realidade onde a navegação pela internet se tornou uma grande e trabalhosa aventura de seleção e de avaliação da qualidade e da veracidade das informações que recebemos.

Das “sugestões” de pesquisa que vão sendo fornecidas pelo Google, enquanto você está digitando o que de fato procura, até às notícias e pop-ups que aparecem nos portais de notícias e nas timelines das redes sociais, passando pelos anúncios que pipocam nos sites pelos quais você navega, somos bombardeados por uma avalanche de informações cuidadosamente escolhidas por algoritmos que se baseiam em informações coletadas de nós mesmos. Em meio a isso, são também selecionadas, por programas ou por agências de notícias que centralizam, segundo seus próprios interesses empresariais, as informações sobre o que acontece no mundo.

É uma quantidade de informação gigantesca que, pela velocidade e quantidade, acaba tornando-se impossível de ser processada. Talvez seja por isso que, na era da informação, seja tão difícil encontrar uma pessoa realmente informada.

Você, que já estudou bastante, consegue garantir a fidedignidade de suas fontes de informação? O que você tem compartilhado em suas redes sociais? Quais jornais ou sites de notícia você acompanha? Você ouve o dissenso? Reflete sobre ele? O risco, em meio à velocidade e profusão de informações, de se deparar com algo que não seja verdadeiro, ou que esconda interesses maliciosos, é muito grande.

É muito fácil, hoje em dia, “viralizar” indignações e manifestações contra este ou aquele absurdo, contra/a favor a tal ou qual pessoa, nos engajarmos em campanhas das mais variadas – inclusive antagônicas – no mundo virtual, mas cada vez mais difícil nos mobilizarmos, sairmos de casa, agirmos para fora do computador e dos limites da tela da televisão e da roda dos amigos que nos dão a proteção de pensar do mesmo modo que nós.

Talvez seja essa a razão de vermos tantos indignados virtuais com a fome, a miséria, o racismo, a pobreza, a violência, o machismo, a homofobia, a corrupção, a falta de saúde, a pouca educação, e tantos outros temas, e tão poucas pessoas agindo efetivamente no mundo real para eliminar tais situações. Lembre-se da pergunta que fiz no começo deste texto: quem é você?

Pode ser que o processamento e a exploração industrial do comércio de metadados sejam uma das principais razões pelas quais #somostodoschape ou tenhamos, há algum tempo atrás, sido todos Charlie, e não sejamos todos Alepo, ou Síria, ou República Democrática do Congo, ou Yemen, ou Chade, ou os refugiados que morrem nas águas do Mediterrâneo, ou mesmo não sejamos todos as crianças que dormem na rua na esquina da sua casa, ou no centro de sua cidade.

Não estou comparando ou classificando tragédias. Não é disso que se trata. Mas, me parece estranho que tantos se mobilizem (ao menos virtualmente) por Paris, pelos cartunistas do Charlie Hebdo, pelos mortos em Nice, pelos atletas da Chapecoense, pelos atropelados de Berlim, aqui e no resto do mundo, e tão poucos (mesmo virtualmente) se comovam com situações e tragédias semelhantes, ou de maiores proporções, sobretudo crises humanitárias, que matam milhares de pessoas inocentes, que vitimam civis em atentados terroristas covardes, que fazem milhões de pessoas abandonarem suas casas, que condenam à morte por fome, por doenças facilmente tratáveis, por contaminações ocasionadas pela ganância econômica.

No tempo que você está lendo estas linhas até aqui, centenas de crianças morreram de fome, em um planeta que produz alimento suficiente para mais do que o dobro da população que abriga, ou de doenças que poderiam ser evitadas com vacinas que custam centavos. Mesmo não aparecendo em sua timeline, neste exato momento (e já há muitos anos) centenas de milhares de pessoas estão à mercê de crises humanitárias na República Democrática do Congo, no Yemen, no Chade, na Nigéria, na Somália, no Sudão, na Palestina, no Mali, e, principalmente, na Síria. A maioria delas, alimentada por pesados interesses econômicos (petróleo, metais, água, terra) e geoestratégicos que movem e patrocinam o elevado padrão de bem-estar social das grandes potências globais.

Há cinco anos assistimos impávidos a uma sequência de absurdos e de crimes contra a Humanidade perpetrados na Síria, com milhões de refugiados e deslocados internos, centenas de milhares de mortos. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo.

Apesar da onipresença de Alepo nos nossos telejornais e nas nossas timelines, e dos vídeos amadores e autobiográficos, principalmente de mulheres e crianças, que nos chegam diariamente (muitos sem que se consiga comprovar a autenticidade), Alepo não é a única cidade sitiada, nem em conflito, num país devastado pela guerra. Nem mesmo é uma cidade que esteve completamente sob o controle de grupos militares que se opõem ao governo Assad, uma vez que a parte Oeste da cidade sempre foi controlada pelo governo e o que foi recentemente retomada por este foi a parte Leste.

Quando nos chegam notícias de Alepo, precisamos tomar cuidado, por exemplo, para se identificar se se está a referir à cidade ou à província, ambas de mesmo nome. A crise humanitária na Síria, em termos humanos, é de dimensões gigantescas, mas é também uma guerra de informações, onde cada lado interessado procura capitalizar mais e vender melhor o “seu peixe”. E, em meio a esse fogo cruzado de bombas, balas e informações, está a população civil.

Há quem culpe o governo Assad e seus principais aliados, entre eles Rússia e Irã, pelo genocídio e pela catástrofe humanitária que assola a Síria. Outros, culpam os EUA e seus aliados na região e na Europa, por mais esta intervenção imperialista e a crise humanitária. Há também quem aponte o fracasso da ONU e sua doutrina da Responsabilidade de Proteção em mais esta catástrofe humanitária.

O que a maioria não vê é que, independente do lado que se simpatize ou escolha para torcer, independentemente do lado que você considere vencedor, ou dos temas selecionados que você aceita se sensibilizar e comover, a verdade é uma só: a grande derrotada na Síria, e em todas as regiões e crises humanitárias esquecidas do planeta, bem como na esquina da sua casa, é a própria Humanidade.

E isso não se resume à Síria apenas. A derrota de nossa Humanidade decorre do torpor do qual nos recusamos a despertar. O mesmo transe que nos deixa inertes em relação às tragédias humanitárias na Síria, no Yemen, na República Democrática do Congo, no Haiti, na República Centro Africana, na Nigéria, no Iraque, na Palestina, nos territórios dominados pelo Estado Islâmico, pela Al-Qaeda, pelos paramilitares na Colômbia, é o que nos faz indiferentes, ou manipuláveis, em relação à violência urbana; que nos mobiliza contra a redução de limites de velocidade nas marginais da cidade de São Paulo, ou nas ruas das grandes cidades do país, mas não nos faz parar de misturar álcool e direção; que nos deixa indignados pela corrupção de membros de um determinado partido, mas não nos abala em relação à corrupção ainda maior daqueles que tomaram ilegitimamente o poder; que nos faz chorar por uma criança com fome na África, mas não nos faz comprar um salgado de padaria para uma criança com fome, que nos interpela na rua por onde caminhamos.

É nisso que reside a derrota de nossa Humanidade. Só que este assunto ainda não apareceu – e, talvez, não apareça – em sua timeline, nem nas manchetes dos principais telejornais ou novelas da televisão. Talvez você pense: Isso não é comigo. Pode ser.  Mas, afinal, quem é você?

P.S.: Nesta época do ano, enquanto muitos se refestelam ao som dos Jingle-Bells tradicionais, ou mesmo da música da Simone, eu me recordo sempre da música Do They Know its Christmas, gravada por um coletivo de artistas britânicos, em 1984, que se nomeou Band Aid (Ajuda das Bandas, em tradução livre) e de onde busquei o título deste texto que você acaba de ler.

Eram artistas em pleno sucesso nos anos 80, Sting (recém-liberto do The Police), Bono Vox, Phil Collins, Boy George, George Michael, Spandau Ballet, Duran Duran, entre outros, todos liderados por Bob Geldof. A música foi gravada para arrecadar dinheiro para as vítimas da fome na Etiópia e nos países vizinhos, então a grande manchete dos principais jornais do mundo e a crise humanitária onipresente na mídia àquele tempo, numa época em que a internet nem sonhava em nascer, não tínhamos celulares, nem TV a cabo, muito menos cobertura global em tempo real.

Lançada no Natal daquele ano (juntamente com o clipe), vendeu milhões, levantou uma quantia em dinheiro considerável e inspirou outros movimento iguais, principalmente o USA for Africa, liderado por Michael Jackson, Quincy Jones e Harry Belafonte (que gravou a música We are the World), além de levar à realização, no ano seguinte, dos concertos do Live-Aid.

Do They Know its Christhmas é uma canção muito bonita, com uma letra forte, que chama a atenção para a disparidade entre o mundo rico/consumista, bem alimentado e feliz, e o mundo pobre, miserável e que preferimos não ver. Recomendo que, no intervalo entre a música da Simone e o especial do Roberto Carlos, você assista ao vídeo (procure no YouTube), leia a letra e sua tradução. Talvez você se sinta tocado(a) e se emocione. Talvez passe a tentar agir de modo diferente. Ou, quem sabe, apenas pense: “Well, tonight, thank God is them, instead of you”.

*João Alberto Alves Amorim é doutor em Direito Internacional pela USP, professor de Direito Internacional e coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi advogado do Acnur e do Centro de Referência para Refugiados, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo


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