Page 22 - ARTE!Brasileiros #59
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DEMOCRACIA E REPARAÇÃO ENTREVISTA KADER ATTIA
O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte,
apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização
Rico, assim como com os Panteras Negras. com os tópicos da reparação, da decolo-
Quer dizer, o feminismo já era decolonial, nização, da modernização, não o fazemos
muito mais cedo do que imaginávamos. para nossa própria comunidade. Estamos
Por isso, incluí muitos arquivos na bie- de acordo com a importância deles, mas
nal. Temos, por exemplo, projetos bem as exposições – não sei quantas pessoas
específicos, como o da israelense Ariella virão à Bienal, umas 100 mil – desempe-
Aïsha Azoulay, The Natural History of Rape nham um papel político na sociedade muito
(a história natural do estupro), e em outros importante, porque o público, a meu ver,
lugares estão objetos em vitrines, como está perdido em um mundo onde as infor-
livros da coleção Archiv der Avantgarden, mações e opiniões estão sendo constante-
de Egidio Marzona, e o livro Djamila Bou- mente manipuladas pelos meios políticos.
pacha, de Simone de Beauvoir, que fala da Ao criar um espaço de exposição como
jovem militante argelina que foi violentada este, onde se trata de dar outra visão de uma
por soldados franceses e faz um eco com a sociedade cheia de feridas que não foram
incrível pintura Grand Tableau Antifasciste reparadas, é aí que outros espaços intersti-
Collectif, que está na Bienal. ciais são importantes, porque os espectado-
Nós também tivemos encontros com res têm que construir uma narrativa.
pessoas incríveis que já vieram falar aqui,
como Françoise Vergès, Felwine Sarr, Jose- Uma das coisas que chamam muito a
ph Tonda e Stefania Pandolf. atenção é a participação interdisciplinar
Eu diria que, como artista, tive uma faci- dentro da mostra…
lidade de me relacionar com os outros Creio que Jean Lassègue, um filósofo ami-
artistas, por entender certas dificuldades. go, disse- me que conhecia um matemático,
Ajudou o meu sentido de espaço e de como David Chavalarias, que fizera um projeto
trabalhar com economias limitadas. Como analisando 82 mil contas de Twitter, entre
artista, trabalhamos com outros artistas, as duas eleições de Macron. Encontrei
que são outros universos intelectuais e Chavalarias e disse a ele que, o que me
emocionais. parecia interessante em seu trabalho, é
É uma responsabilidade enorme, que que estava mostrando a vulnerabilidade da
funciona com a confiança que os artistas opinião dos indivíduos hoje em dia. Bem,
dão a você, e para criar esta mensagem vocês no Brasil conhecem isso, com a elei-
e compartilhar com o público, você tem ção de Bolsonaro. Segundo Chavalarias,
que pensar muitíssimo em espaços que Gabriel Taub dizia, no fim do século 19, que
separam as obras. Espaços intersticiais, e o carisma e o magnetismo que um político
então criar diálogos entre as obras, como consegue exercer sobre grupos alcança
o que acontece entre a pintura de Calida no máximo 500 pessoas. O processo de
Garcia Rawles e o vídeo Erasing the Green, influência da opinião pública pertence aos
de Dana Levy. sujeitos, entre si. E o que a governança
Ou seja, como artista, criar um espaço algorítmica está fazendo hoje é a ampliação
de diálogo para compartilhar uma visão e disso, que é tecnicamente possível.
assim abrir o pensamento do público. Por- No WhatsApp, no Twitter, os grupos
que especialmente nós, que trabalhamos se relacionam em comunidades que são
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