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HOMENAGEM CARLITO CARVALHOSA
A morte prematura de Carlito Carvalhosa no último exterior. De aparência leve, mas pesando oito toneladas,
mês de maio, aos 59 anos, despertou um forte senti- essas peças mantinham aquele aspecto paradoxal,
mento de tristeza e impotência, expresso de maneira indevassável, que o artista dizia buscar em seu trabalho.
contundente nas redes sociais de admiradores, artistas, Essa obra inaugura uma série de diálogos trava-
críticos, colecionadores, marchands e todas essas dos por ele com ambientes museológicos de grande
categorias que compõem o difuso grupo conhecido importância institucional e arquitetônica, considera-
como “circuito das artes”. A impossibilidade de realizar dos como marcos tanto em sua produção como na
uma cerimônia de despedida e elaborar coletivamente importância crescente das grandes instalações na arte
o luto somou-se ao sentimento de desesperança vivido contemporânea brasileira. É o caso, por exemplo, da
no país em consequência da tragédia sanitária, social mostra Sala de Espera, que inaugurou no ano de 2013 o
e política em que estamos mergulhados. É sabido que anexo da nova sede do Museu de Arte Contemporânea
o artista não morreu de Covid-19 e que há muitos anos de São Paulo (maC-usp), das instalações A Soma dos
lutava contra o câncer, mas restou uma sensação de Dias, com versões similares apresentadas no octógono
que perdas como essa resumem o esgarçamento e a da Pinacoteca do Estado (2010) e no Museu de Arte
destruição de um projeto civilizatório no qual a arte Moderna de Nova York (2011), ou ainda da monumental
desempenharia um papel fundamental. Objeto de inten- escultura Já estava assim quando cheguei. A peça, exi-
sas manifestações de afeto e admiração, Carlito e sua bida originalmente no mam Rio em mostra temporária
obra acabaram por corporificar essa noção de arte realizada em 2006 e posteriormente incorporada pelo
como elemento de reflexão e transformação, hoje tão acervo do Sesc Guarulhos, remete à imagem do Pão
violentamente ameaçada. de Açúcar às avessas, uma montanha volumosa que
Se há algo que caracteriza de forma mais geral a flutua invertida no ar, provocando o visitante com seu
obra do artista é seu desejo de atuar nas fronteiras caráter instável e precário. Um aspecto secundário,
perceptivas, transformando nossa apreensão de mun- porém instigante, no trabalho de Carlito é a atenção
do e reafirmando o caráter transitório das coisas. Sua que ele dá à palavra. Seus títulos trazem sempre uma
carreira começa na década de 1980, vinculada a um dimensão poética, uma sugestão temporal ou narrativa
projeto de viés coletivo, junto a um grupo que incluía que adere ao trabalho, somando-se ao aspecto formal
Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo e gerando outra camada de significados.
Andrade. O grupo, conhecido como Casa 7 (referência Há em comum em todos esses projetos, que jogam
ao número do ateliê que dividiam), partilhava interesses com luz, equilíbrio, volume, profundidade e transparência,
comuns como a ligação com o neo-expressionismo e o um desejo permanente de transformar sutilmente nossa
uso de materiais pouco nobres como o papel Kraft e a apreensão daquilo que nos cerca. Ao acionar esses
tinta industrial. As experiências iniciais de Carlito com o espaços por meio de pequenas intervenções (como
desenho e a pintura pouco a pouco foram dando espaço quando ergueu os heráldicos móveis da Fundação Eva
também para pesquisas de cunho mais escultórico, para Klabin, colocando sob eles frágeis copos de vidro) ou
um interesse crescente pela ocupação do entorno. Ele de ações de maior impacto visual ou sensorial (como as
passa a explorar o ambiente, incorporando elementos grandes espirais de tecido translúcido que compõem
simples e brutos, mas de forte carga simbólica, como a a cena em Soma dos Dias), cria uma espécie de lugar
luz, os tecidos translúcidos, a madeira e o gesso, mate- fora do tempo, em que as sensações de pertencimento
riais que passaram a ser frequentes em sua produção. e ausência se sobrepõem. Algo que Lorenzo Mammì
“Quis dar um nó nesse espaço”, confessou ele ao definiu como um “não lugar”. Ou, nas palavras de Marta
longo da montagem de sua primeira grande instalação Mestre, uma situação que é extremamente ambígua,
site specific, realizada no Museu Brasileiro da Escultura “porque vacila permanentemente entre contemplação
e Ecologia (MuBe), em 1999. Nesse trabalho, intitulado e experiência, entre distância e aproximação, entre
Duas Águas, Carlito literalmente transferiu seu ateliê óptico e háptico”. Em outras palavras, a obra de Carli-
para o museu e travou um embate com a arquitetura to vai além de desafiar o espectador com instigantes
rigorosa e retilínea de Paulo Mendes da Rocha (outra provocações temporais e espaciais. Ao longo de mais
grande perda das últimas semanas), criando in loco de três décadas, ele problematiza a relação entre a obra
uma série de monumentais estruturas em gesso, com de arte e o público, incorporando-se à melhor tradição
formas orgânicas, que invertiam a noção de interior e da arte contemporânea brasileira.
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