Page 20 - ARTE!Brasileiros #48
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ANÁLISE TENDÊNCIA
atitudes, que não haver a entrevista torna-se irrelevante. seus moradores de uma maneira muito diferente de como
Outros jornalistas que participam dessa vertente possuem costumam circulam as imagens dessas pessoas, em geral
práticas até mais radicais, como Hunter Thompson que vitimadas após alguma catástrofe. Ela construiu uma série de
fazia um trabalho de imersão, ele mesmo se misturando aos imagens onde esses moradores estão em momentos de lazer,
personagens sobre os quais iria escrever, sem para isso se com atitudes empoderadas, às vezes até semelhantes a como
identificar como jornalista. Foi dessa forma que ele retratou revistas sensacionalistas retratam celebridades.
o grupo norte-americano de motociclistas baderneiros, Se por um lado a artista dá visão a um grupo marginalizado
Hell´s Angels, a convite da revista The Nation, que resultou pela mídia, ela constrói essas imagens não só de maneira
no livro Hell´s Angels – Medo e Delírio sobre duas rodas. respeitosa, mas permitindo que eles posem com uma
Durante mais de um ano, ele conviveu com os motoqueiros dignidade que em geral não lhes é concedida. Para construir
radicais clandestinamente, podendo assim realizar um essas imagens, até mesmo com recursos da publicidade e
texto muito realista sobre suas atividades fora da lei. O da moda ela se apropria, desconstruindo, assim, a típica
próprio Thompson denominou esse estilo como “jornalismo imagem do favelado. Vinda a público em 2005, a série
gonzo”, uma forma irônica de apontar uma contradição na rapidamente conquistou o sistema da arte e tem sido exibida
própria condição de jornalista que é se caracterizar como em muitas exposições, sendo possivelmente uma das
um personagem, sem assumir publicamente, ficando aí em melhores representações da ascensão social ocorrida nos
uma zona bastante questionável eticamente. Na Alemanha, governos do PT.
o jornalista Hans-Günter Wallraff tem um procedimento Desde então, ela vem trabalhando com o alemão Benjamim
semelhante, tendo se passado por funcionário da cadeia de Burca, realizando especialmente vídeos, nos quais
de fast-food McDonalds, como um turco trabalhando segue buscando dar visibilidade a grupos marginais, como
em condições de subemprego e como repórter do jornal os evangélicos em Crentes e Pregadores, de 2014. Nesse
sensacionalista Bild-Zeitung. Em todos esses casos ele vídeo eles retratam os cantores das igrejas evangélicas,
publicou livros, sendo o mais famoso Cabeça de Turco, sobre inserindo-os em um contexto pop, algo próximo a Terremoto
as condições de trabalho para os imigrantes na Alemanha. santo, documentário musical com jovens da Zona da Mata
Tanto Thompson quanto Wallraf buscam estender os pernambucana que sonham em gravar um videoclipe gospel,
limites do jornalismo a partir da inspiração na literatura, exibido na mostra Corpo a Corpo, que abriu o Instituto Moreia
usando procedimentos da ficção. No Brasil, Otávio Frias Salles em São Paulo.
Filho (1957 – 2018) inspirou-se nesse modelo para produzir O universo da música foi também abordado em Estas Vendo
reportagens imersivas em casas de swing, no Teatro Coisas, sobre a cena brega do Recife, exibido na 32ª Bienal
Oficina e outras experiências, o que resultou no livro de São Paulo, em 2016, Incerteza Viva. Nele, Wagner e Burca
“Queda livre, ensaios de risco”. desenvolvem uma colaboração efetiva com os músicos
retratados no trabalho, pois o roteiro foi escrito de forma
E O LUGAR DE FALA? conjunta com os participantes do Brega e da indústria de
Essas experiências imersivas no jornalismo, mesmo videoclipe que o circunda. A colaboração entre os artistas e
que exercidas com muitos limites, representam de fato seus retratados se tornou uma prática comum nos trabalhos
uma percepção sobre a necessidade empatia, isto é, de mais recentes, incluindo Swinguerra, sendo que não só os
conseguir se colocar no lugar do outro para poder ter uma artistas, mas Eduarda Lemos, uma das figuras centrais do
visão mais ampla. Da empatia para a colaboração efetiva trabalho, também estavam na abertura da mostra italiana.
é uma passagem que pode ser vista no trabalho É em gestos dessa natureza que fica claro como a autoria
Swinguerra, de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, compartilhada torna-se de fato efetiva.
que segue em cartaz em Veneza, e deve ser visto Falar sobre outro, assim, não é uma atitude voyeurística ou
no pavilhão da Bienal de São Paulo. ilustrativa. É comprometimento, algo que teve seus passos
Por sua formação em jornalismo, Wagner tem boa parte iniciais nas primeiras obras de Sophie Calle e Vito Acconci,
de sua obra sendo fruto de um diálogo entre práticas apesar de eles seguirem o outro, mas sem envolvimento. Em
documentais e arte. Nascida em Brasília, a artista se Bárbara Wagner e Benjamim de Burca representar o outro
formou em Jornalismo pela Universidade Federal de significa uma parceria efetiva de trocas para a construção
Pernambuco, em 2003. Nos dois anos seguintes, frequentou do trabalho, e para que ele seja um lugar de fala por quem
Brasília Teimosa, a maior favela do Recife, retratando realmente deve falar.
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BOOK_ARTE_48_AGOSTO2019.indb 20 30/08/19 19:33