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ANÁLISE TENDÊNCIA






             RETRATAR APENAS JÁ NÃO BASTA





             PORQUE SWINGUERRA, DE BARBARA WAGNER E BENJAMIM DE BURCA, É OBRA QUE DIALOGA COM O CONCEITO “LUGAR DE FALA”


             POR FABIO CYPRIANO



             HÁ UM DEBATE NECESSÁRIO, atualmente, sobre a relação   em um espaço privado, onde a presença do artista não
             entre o artista, as representações contidas em suas obras e   fosse permitida. Se a pessoa entrasse em um cinema, por
             o um conceito que vem se constituindo como “lugar de fala”,   exemplo, Acconci também entraria pagando a entrada.
             tendo Djamila Ribeiro como uma de suas protagonistas.  Essas perseguições podiam durar minutos ou mesmo horas,
             A questão é pensar o que é correto eticamente, agora em   dependia apenas do percurso do outro.
             2019, que fique claro, se uma artista ou um artista branco   Para Acconci, que tinha formação em literatura e era um
             pode retratar, por exemplo, questões indígenas, quando   crítico do sistema de arte baseado no mercado, esse tipo de
             há muitos artistas indígenas que podem falar sobre sua   ação significava a própria perda da primazia do artista sobre
             realidade com muito mais propriedade?             a obra, já que ele declarava “eu quase não sou mais ‘eu’”.
             Incontornável pensar em Claudia Andujar e toda sua   O que ele apresentava como trabalho final, no caso, era
             militância com os Yanomami, que muito além de abordar um   um mapa da cidade no qual ele marcava as ruas por onde
             massacre em curso desde os anos 1970, tornou o combate a   passava, fotos das pessoas que ele seguiu realizadas sem
             ele sua missão central. Sua radicalidade vai a ponto de seu   que elas percebessem, observações e marcações do tempo
             trabalho fotográfico ser na verdade uma extensão dessa   em cada caminhada.
             dedicação e parte significativa de toda venda de sua obra   Percebe-se aí de maneira muito clara como esse empenho
             sobre essa temática ser repassada aos indígenas. Antes   em sair do espaço protegido do ateliê representa mesmo
             do termo ser constituído, Andujar de fato já buscava se   essa vontade em abandonar o controle total sobre o
             aproximar do lugar de fala indígena de maneira radical.  trabalho e uma necessidade de observar o outro a partir do
             A representação do real, na arte contemporânea, é uma   uso de instrumentos que são típicos, inclusive, da prática
             chave essencial para sua própria compreensão e teve   jornalística, no caso de Acconci, a câmera fotográfica,
             início quando artistas passam a usar câmeras fotográficas   especialmente porque suas imagens seguem o estilo
             e câmeras de vídeo, já nos anos 1960 e 1970, que se   documental: não há encenação, o personagem sequer
             incorporam ao seu repertório de instrumentos de trabalho.   sabe que está sendo fotografado, compondo, portanto, um
             Vimos aí, aliás, um movimento importante: a saída do   retrato “real” dessa pessoa.
             espaço protegido de criação como o ateliê para a procura   Sophie Calle fez algo muito semelhante em Paris, dez anos
             do contato com o outro, com as coisas do mundo, ao mesmo   depois, em 1979, mas de maneira ainda mais radical, quando
             tempo que denota uma atenção para a necessidade de estar   passa a perseguir pessoas nas ruas da capital francesa
             disposto a se contaminar por essas coisas do mundo, pelo   até ficar obstinada por uma delas, que ela passa a chamar
             aleatório e pela surpresa. Esse foi um momento importante   Henri B., e que chega a conhecer em uma festa. Lá Calle
             da renovação da linguagem artística, portanto da   descobre que ele vai viajar para Veneza e ela decide segui-lo
             experimentação. Inegável perceber como ela é impulsionada   secretamente, registrando, por duas semanas, tudo que
             pelo uso de novas tecnologias. Dois artistas usaram esse   ele faz na cidade italiana. O resultado é a série de fotos e
             procedimento de forma exemplar: o norte-americano Vito   textos Suite Vénitienne (suíte veneziana), na qual ela atua
             Acconci e a francesa Sophie Calle.                como espiã e analista, ao fazer uma série de ilações sobre
             Em 1969, em Follow Piece, Acconci selecionava, de maneira   o personagem nos relatos escritos. Ao mesmo tempo, essa
             aleatória, pessoas na rua e as seguia, sem que elas   perseguição obcecada, em uma cidade romântica como é
             soubessem. A perseguição ocorria até que elas entrassem   Veneza, levanta a questão da afeição pelo objeto.


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