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EXPOSIÇÃO SÃO PAULO | RIO DE JANEIRO
DELICADA POTÊNCIA
EXPOSIÇÃO DE ROSANA PAULINO, COSTURA DA MEMÓRIA, SAI DA
PINACOTECA DE SÃO PAULO E CHEGA NO MUSEU DE ARTE DO RIO
POR SOLANGE FARKAS
EM MEIO À PRODUÇÃO ARTÍSTICA que emerge das regiões de pas-
sado colonial do mundo, a obra de Rosana Paulino vem se tornando
referência diante de nossos olhos. Na pesquisa curatorial que busca as
vozes e falas desse polo geopolítico – e que alimenta as ações do Vide-
obrasil –, sua força se impõe cada vez mais. Lembro-me da impressão
que me causaram os primeiros trabalhos da artista que vi, sobretudo a
série Bastidores (1997), na qual uma costura raivosa e definitiva toma
o espaço de decoro e recato (branco, feminino e burguês) do bordado
para calar e cegar mulheres negras. Ou das monotipias Proteção extrema
contra a dor e o sofrimento (2011), nas quais linhas de costura caem dos
olhos de uma figura nua de mulher para compor algo que parece um
arremedo frágil de coberta protetora, mas também um emaranhado
que limita e aprisiona.
Esta última série foi escolhida pelo artista e curador Daniel Lima para
integrar a exposição Agora somos todxs negrxs?, que compôs o programa
do Galpão Videobrasil em 2017. A mostra incluía ainda Tecido social,
gravura de título irônico em que Paulino junta imagens com suturas
malfeitas e costuras forçadas para por em xeque ideias de sociabilidade
pacífica e unidade nacional. Disposto a desafiar a perpetuação do mito da
cordialidade racial brasileira, inclusive no meio da arte, Lima reunia uma
geração que se propõe a desconstruir o que descreve como o “tríplice
trauma da colonização (extermínio das populações nativas, escravidão
e perseguição religiosa) por meio do poder micropolítico da arte”.
Essas experiências pregressas com o trabalho da artista não me prepa-
raram para o impacto que senti ao percorrer a exposição Rosana Paulino:
costura da memória. Foi só diante do corpo de obra reunido pela Pina-
coteca de São Paulo que me dei conta da real dimensão da produção
da artista. Impressiona o domínio e a maestria com que ela se serve
de uma diversidade de técnicas e linguagens, como aquarela, desenho,
cerâmica, vídeo, bordado, escultura. Mas, mais ainda, a potência poética
e política de sua narrativa, que mergulha na história para trazer à tona
um passado doloroso e sua herança muito presente, seja na forma de
impacto sensorial, seja por meio de associações instigantes de ideias.
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