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CRÍTICA DIAS & RIEDWEG
QUANDO PRODUZIR NUDES ERA
UM OFÍCIO PROFISSIONAL
Em exposição na galeria Vermelho, Dias &
Riedweg exploram o universo erótico do
fotógrafo norte-americano Charles Hovland
POR FABIO CYPRIANO
DESDE 1993, o brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Rie-
dweg formam uma dupla artística, para a qual a ideia de par-
ceria não se concretiza apenas no trabalho conjunto, mas,
especialmente, em um tipo de trabalho que envolve também
outras pessoas, coletivos ou comunidades.
É como se o método de trabalhar Dias & Riedweg se expandisse
como uma necessidade vital e viral, incorporando sempre
outros além deles próprios, uma abordagem praticamente única
no cenário nacional das artes visuais, de egos tão inflados. Foi
assim, só para citar um caso, com Os Raimundos, os Severinos,
os Franciscos (1998), exibido na 24ª. Bienal de São Paulo, que
envolveu porteiros e zeladores nordestinos da capital paulista.
Nunca são obras “participativas”, tampouco ilustrativas sobre
o tema escolhido, mas uma espécie de aproximação afetiva,
que seleciona momentos desses encontros e se formaliza de ARQUIVO FANTASIA, 2017. AS FOLHAS DE CONTATO P&B DE HOVLAND
maneira muitas vezes encenada, próxima da ideia de uma obra FORAM RECRIADAS EM ANIMAÇÕES DE VÍDEO DIGITAL
de arte total, que acolhe o espectador em vários sentidos.
Em sua mais recente exposição, CameraContato, que esteve
em cartaz na galeria Vermelho em abril e maio passados, pela por abordarem temáticas queer e museus se autocensuram
primeira vez a obra de Dias & Riedweg se aproxima de outro para evitar ataques, a exposição foi um suspiro necessário
artista, o fotógrafo norte-americano Charles Hovland (1954). frente à onda conservadora que ocorre no país.
A obra de Hovland é surpreendente em si. Em um anúncio no A mostra foi composta por duas grandes instalações, Arquivo
tablóide novayorquino The Village Voice ele ofereceu seus ser- fantasia e Arquivo romance e subprodutos objetuais – fotos
viços para fotografar as fantasias sexuais de interessados, nos emolduras criadas a partir delas.
anos 1980. Durante mais de 20 anos, Hovland retratou todos Em Arquivo fantasia (2017) as folhas de contato PB de Hovland
os tipos e representações de sexualidade de jovens e idosos, foram recriadas em animações de vídeo digital, apresentadas
gordos e magros, ilustres e desconhecidos em seu estúdio em em cinco vídeos verticais, com áudio das anotações do fotó-
Manhattan, reunindo um arquivo de três mil rolos de filme PB, grafo sobre seus modelos, lidas em voz alta por ele mesmo.
com as respectivas provas de contato. Já Arquivo romance (2018) projeta fragmentos de corpos
Ainda nesse período, ele produziu mais de 450.000 cromos nus retratados por Hovland mas vistos por um caleidoscópio,
fotografando nus masculinos para revistas como Mandate e fragmentando assim as imagens eróticas, tornando-as às vezes
Honcho, sob o pseudônimo Chuck, trabalho que teve início a visíveis, às vezes abstratas. Na mostra também foi exibido o
partir do convite de um de seus clientes. Além de fotógrafo, filme Esperando um modelo, um documentário bastante subje-
ele ainda é ativista de movimentos e organizações não gover- tivo sobre Hovland em seu estúdio, um lugar bastante surreal
namentais na luta contra a AIDS, como ACT UP, ou seja, uma cheio de pequenas coleções, de objetos religiosos a bonecas.
figura impar, mas protagonista hoje esquecido. Assim, em CameraContato, a dupla apresenta pistas de uma
Foi a partir do imenso arquivo de imagens eróticas de Hovland, história complexa, sobre um fotógrafo que retratava as fan-
testemunha de um tempo de fantasia e desejo anterior às facili- tasias sexuais de outros quando sexo se tornou sinônimo de
dades das câmeras digitais e dos nudes distribuídos em aplicati- morte com a Aids. Por isso, é uma mostra que, afinal, também
vos de encontros, que Dias & Riedweg criaram CameraContato. fala de parcerias, cumplicidade e empatia, a estratégia central
Em um momento quando instituições de arte são perseguidas dos trabalhos das dupla.
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