Rovena Rosa/Agência Brasil_02/05/2018
Rovena Rosa/Agência Brasil_02/05/2018

Por Cilene Victor*

Como pesquisadora, tenho evitado comentar ou escrever sobre tragédias ou desastres, sobretudo por duas razões.

A primeira é porque essas ocorrências, em sua maioria, raramente são inevitáveis e tampouco desconhecidas, como o desabamento do prédio no Largo do Paissandu, que servia de moradia precária para mais de 140 famílias. Falar sobre um desastre, sobre uma tragédia, significa dizer que a esperamos chegar.  

Essas tragédias têm sido construídas ao longo da história, resultado da iniquidade social que define todo o resto da história. A especulação imobiliária, com seus projetos de gentrificação, e a omissão do Estado empurram as famílias mais pobres para as áreas com maior risco de ocorrência de desastres relacionados a enchentes, inundações e escorregamentos de terra.

Para se ter uma ideia, de acordo com os números da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, SEDEC, órgão do Ministério da Integração Nacional, nos últimos cinco anos, o país reconheceu uma média anual de 2.400 desastres. E aqui estão somente aqueles que demandaram decretação de situação de anormalidade, como situação de emergência ou estado de calamidade pública. O número de ocorrências, portanto, é muito maior.

Os desastres e as tragédias, como a do Largo do Paissandu, acontecem todos os dias, mas seguem invisíveis midiática e politicamente.

A segunda razão que tem me levado a evitar o tema das tragédias e dos desastres é a atmosfera típica de um cenário de grande apelo midiático e, consequentemente, político, ainda mais em ano eleitoral.

Enquanto as vítimas são atendidas em tendas ou barracas improvisadas por voluntários e instituições humanitárias, e o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil trabalham em busca de sobreviventes, muitos veículos de comunicação querem uma resposta que poderia ser dada depois. Os primeiros momentos de uma tragédia demandam esforços para reduzir as perdas, os danos e o sofrimento das vítimas. Isso porque os culpados estão nas linhas anteriores. São todos aqueles que contribuem para a construção social dos riscos e pelas estatísticas dos desastres e das tragédias.

Com medo das perguntas da imprensa e da crítica da opinião pública, os políticos recorrem ao recurso mais perverso para a blindagem de sua imagem: o dedo em riste na cara de quem já perdeu tudo e ainda assim é apontado como culpado pela tragédia social que culminou com o desabamento do prédio.

Enquanto boa parte do mundo tenta humanizar o atendimento às vítimas, aqui os políticos preferem andar na contramão, rasgando protocolos, agendas e marcos globais adotados ou ratificados pelo país.

O velho recurso da culpabilização das vítimas não apenas foi usado pelo governador Márcio França, como pelo seu adversário, João Doria. A pior rota de fuga.

Poderia associar a fala dos dois à pressão que uma tragédia gera nas instituições que deveriam evitá-la, mas essa pressão não pode ser responsável pelos tropeços ético, moral e humano.  

França e Doria avançaram um sinal e entraram pela porta dos fundos, não da tragédia, mas de um mundo que não pode mais tolerar, sobretudo num cenário de dor, a perpetuação da violação de direitos por parte de quem não os garantiu.

França e Doria tentaram desenhar o perfil dos moradores de ocupações irregulares, mas ambos apenas conseguiram desenhar o perfil dos gestores que são e prometem ser. Nenhuma pressão seria suficiente para afastar um gestor da função que ele deve assumir em cenários de desastres e tragédias. A eles não faltaram apenas preparo e lucidez, faltou humanidade.

Esqueci de escrever lá no começo, mas a atitude ultrajante de alguns gestores públicos é a terceira razão que me faz evitar escrever sobre desastres e tragédias. Recordar a fala deles me dá a certeza de que a tragédia ainda não começou para a maioria das vítimas do Largo do Paissandu.   

 

Jornalista das áreas de ciência e meio ambiente. É professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão Territorial da Universidade Federal do ABC-UFABC, onde atua como pesquisadora dos laboratórios de Gestão de Riscos – LabGRIS e de Justiça Territorial – LabJuta. É doutora em Saúde Pública pela USP, mestre em Comunicação Científica e Tecnológica e especialista em Comunicação Aplicada à Saúde, ambos pela UMESP.


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