Por Caroline Vieira

Em 1835, na região conhecida como Campo da Pólvora em Salvador, Bahia, foram mortos quatro africanos condenados pela participação na Revolta dos Malês. Os corpos foram enterrados numa cova comum de um cemitério vizinho destinado a indigentes e escravizados. Esta afirmação foi escrita pelo historiador João José Reis e publicada no livro Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil em 2013. 

A morte aplicada a esses africanos, considerados rebeldes, ganha tintas ainda mais violentas ao sabermos que foram enterrados em uma cova comum, em um cemitério que foi apagado da história. Pelo menos era o que parecia até então, quando foi comunicada à imprensa no dia 26 de maio de 2025, que escavações preliminares confirmaram a existência de ossada no antigo cemitério dos africanos no Campo da Pólvora em Salvador, na Bahia. 

A localização aconteceu a partir de uma pesquisa em desenvolvimento por Silvana Olivieri. Ela nos conta que o processo se deu a partir do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA e, também, de sua vivência no candomblé e do seu envolvimento com os debates contemporâneos do campo da filosofia e da antropologia, buscando mostrar como os processos de urbanização têm servido ao que Ailton Krenak chama de “guerra de mundos”. 

“Fazendo pesquisa de campo em Belém, em maio do ano passado, soube que existia um antigo cemitério de pessoas escravizadas, indígenas e indigentes, soterrado pela urbanização. Voltei para casa com uma questão: haveria um cemitério similar em Salvador, que eu desconhecia? Após duas semanas de intensa investigação, não apenas descobri a existência do cemitério do Campo da Pólvora, como consegui identificar sua localização exata, informação ausente dos estudos e trabalhos historiográficos recentes relacionados ao espaço fúnebre”.

“Inicialmente, a evidenciação ocorreu por meio do cruzamento de mapas e plantas de Salvador do século 18 com uma imagem de satélite da área, que foi sendo anexada a outros documentos bibliográficos (livros e artigos de revistas) que mencionavam o destino do terreno do cemitério após sua desativação em 1844, tudo indicando que o cemitério estava localizado sob o estacionamento do Complexo Pupileira, imóvel da Santa Casa de Misericórdia, no bairro de Nazaré”, situa Olivieri. 

A pesquisadora relata que entre a localização espacial do cemitério até a montagem de uma comissão envolvendo arqueólogos houve um grande processo. “Juntamente com Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito e coordenador do Programa Direito e Relações Étnico-Raciais da UFBA, elaboramos um dossiê reunindo toda a documentação relativa à localização do cemitério do Campo da Pólvora e, no fim de julho (2024), encaminhamos ao IPHAN, acompanhado de uma solicitação de apoio institucional para realizarmos uma pesquisa arqueológica no estacionamento do Complexo Pupileira, em busca de restos mortais das pessoas sepultadas no antigo cemitério”, explica. 

“Inicialmente, as tratativas com a Santa Casa para obtermos a autorização para realização da pesquisa arqueológica foram conduzidas pelo IPHAN. Diante das dificuldades encontradas, em dezembro, pedimos apoio também do Ministério Público da Bahia, mais especificamente do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural – NUDEPHAC. No fim de março, através de um Termo de Cooperação Técnica elaborado por quatro promotores do MP, a Santa Casa finalmente autorizou a realização da pesquisa. Coordenada pela arqueóloga e antropóloga Jeanne Dias, que havia se juntado a nós ainda em julho, a pesquisa financiada pela empresa Arqueólogos com recursos próprios aconteceu entre os dias 13 e 23 de maio de 2025, sendo achados remanescentes ósseos humanos nas duas primeiras sondagens”.

Nesse primeiro momento, segundo informação da arqueóloga Jeanne Dias, “a pesquisa teve um caráter de diagnosticar, ou seja, localizar a presença dos vestígios desses enterramentos no local, cujo êxito foi alcançado no dia 19 de maio quando identificamos os fragmentos ósseos humanos a partir de 3 metros de profundidade”. Uma das maiores dificuldades relatada pela arqueóloga foi justamente a enorme densidade do aterro, o que dificultou a chegada até uma camada arqueológica considerada interessante para a pesquisa.

Os primeiros vestígios foram identificados a partir do quinto dia, numa área equivalente a aproximadamente três vagas, pois o cemitério também foi “enterrado”, como uma forma de ocultar esse episódio da história do Brasil na Bahia e dos escravizados. Com os achados da pesquisa, o cemitério pode ser identificado como um dos maiores cemitérios públicos da América Latina. A estimativa é que lá tenham sido enterrados mais de 100 mil corpos ao longo do período em que o espaço funcionou com essa finalidade. Segundo fontes históricas, o cemitério foi primeiro administrado pela Câmara Municipal e, logo depois, foi assumida a responsabilidade pela Santa Casa da Misericórdia. 

Historicamente, sabia-se da existência desse suposto cemitério ali pela área do Campo da Pólvora, mas a pergunta que fazemos aos envolvidos é a seguinte: Por que a demora em identificar, localizar e reconhecer esse espaço?

Os estudos e trabalhos historiográficos recentes, explica a pesquisadora Silvana Olivieri, que “falavam do cemitério do Campo da Pólvora, especialmente o livro A morte é uma festa, de João José Reis, publicado em 1991 e reeditado em 2022, não revelavam sua localização exata, nem o que aconteceu com o lugar após ter sido desativado pela Santa Casa, em maio de 1844. Essa lacuna na historiografia certamente contribuiu para a demora em achá-lo. Pode ter contribuído também a afirmação de Reis de que os restos mortais pertencentes ao antigo cemitério foram transferidos para o novo cemitério do Campo Santo. Ora, se os restos mortais tivessem sido realmente removidos, não haveria praticamente nada mais a se achar ali, com o local perdendo seu interesse arqueológico. Essa hipótese caiu por terra ao acharmos os restos mortais durante as escavações”, contextualiza Olivieri.

“A Santa Casa, por sua vez, embora declarasse publicamente não saber a localização do cemitério do Campo da Pólvora, nos encaminhou em dezembro a escritura de compra e venda da Pupileira, onde consta que o imóvel compreende “o terreno que serviu antigamente de cemitério”. Isso nos permite concluir que a instituição sempre soube que o antigo cemitério ficava na parte frontal do seu imóvel, escondendo essa informação da população, colocando um estacionamento em cima dos mortos”, ratifica. 

A descoberta dos ossos humanos no Cemitério do Campo da Pólvora remonta a 150 anos de história acerca desse espaço forjado no século 18. Um local altamente precarizado e que revelava como a sociedade baiana enxergava aquelas pessoas. O fato é que grupos humanos foram enterrados sem nenhum rito religioso. Perguntamos a Silvana como era feito o transporte dos corpos pela Santa Casa e se aquelas pessoas puderam, ao menos, ser identificadas. 

Novamente em A morte é uma festa, uma das principais referências da nossa pesquisa, João José Reis diz que “os sepultamentos no cemitério do Campo da Pólvora eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre, nem há registro de capela. O transporte dos corpos para o cemitério era feito nos banguês, esquifes mais simples e baratos da Santa Casa, que detinha o monopólio do serviço funerário na época. Os Livros de Banguê, coleção de 11 volumes muito bem conservada pela Santa Casa, trazem informações preciosas sobre as pessoas levadas nos banguês para sepultamento no cemitério entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a etnia, completa Silvana. 

Apesar desse terrível fato histórico, com a descoberta do espaço, real localização e a finalização das escavações no dia 23 de maio, o antigo cemitério do Campo da Pólvora foi registrado pelos arqueólogos no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN como “Cemitério dos Africanos”, portanto já se encontra salvaguardado e protegido pelas normativas do IPHAN para esse tipo de patrimônio cultural e histórico, e agora a Santa Casa tem a responsabilidade de preservá-lo. Assim que o relatório arqueológico for concluído, o Ministério Público deve convocar uma audiência pública para ouvir as comunidades negras de Salvador sobre o cemitério, e se decidir quais devem ser os próximos passos. Uma das ideias que pretendemos discutir na ocasião é a criação de um memorial/museu, como já ocorreu/vem ocorrendo com outros cemitérios de escravizados localizados em cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo”, finaliza Silvana Olivieri. 

A arqueóloga Jeanne Dias espera também que haja por parte da população um interesse em acompanhar os desdobramentos a partir das audiências públicas mediadas pelo Ministério Público, com a entrega do relatório final. Para Dias, esse tipo de descoberta proporciona “um acerto de contas com a História, gerando um engajamento na sociedade Brasileira e sobretudo na sociedade baiana, no que tange à discussão acerca do racismo e da discriminação social. O achado pode ser também uma oportunidade para falarmos um pouco mais sobre a história desses indivíduos nesse período sombrio, um período recente, mas que deixou máculas na sociedade e que, até hoje, a gente sente. E para pensarmos acerca da formação de uma memória coletiva sobre populações negras que vieram de África e que foram desumanamente tratadas e indignamente enterradas”. 

Por fim, que essa importante descoberta, encabeçada pelas duas pesquisadoras, Silvana Olivieri e Jeanne Dias, sirva, senão para dar dignidade àqueles que foram enterrados como seres abjetos, para iluminar o presente, impedindo que condições semelhantes se repitam nas favelas das capitais brasileiras.


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