O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk

Por Tatiana Eskenazi*

Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Paulo Leminski

No princípio, era a linha. Do primeiro traço humano, registrando o gesto, à elaboração da linguagem. Antes mesmo, do humano: a linha que dá forma ao mundo. Partindo de um paradoxo, “como um traço contínuo de uma só dimensão pode ser um corpo?”, e nos paradoxos reside um imenso potencial criativo, em seu novo livro O corpo da linha: notações sobre o desenho, a artista e escritora Edith Derdyk percorre um trajeto que não é linear, mas que segue um fio da meada em torno da linha e suas infinitas possibilidades, e propõe uma investigação sensível e profunda sobre o ato de desenhar.

O livro se organiza como uma costura de fragmentos (pequenos ensaios, aforismos, imagens e provocações) que se conectam por um fio condutor: a linha. Essa linha, no entanto, não é apenas formal. É também existencial. “A linha é condutora de uma experiência que atravessa o corpo, é território de trânsito entre o dentro e o fora”. Não à toa, por vezes, temos a impressão de tratar-se de um grande poema, um manifesto, ou um livro de artista. 

E se o corpo da linha quem dá é a mão que alinhava, assim a autora o faz. A linha como processo, em um alinhavar contínuo, “o gosto pelo caminho sem destino”. A intenção é esgotar a linha em todas as suas possibilidades — ainda que isso seja impossível. “E, porque inalcançável, impulsiona o eterno desejo de deslocamento, vocação da linha.” Porque aqui, nada importa mais do que o processo, a investigação, da arqueologia da linha a novas formas de ver e traçar futuros possíveis.

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Articulando referências de diferentes áreas — filosofia, literatura, artes visuais — para aprofundar seu pensamento, somos conduzidos por um coro de autores, artistas e pensadores ao longo do trajeto. Foucault, Deleuze, Deligny, Simondon, Ponty, Valéry, Lispector, Mario de Andrade, Fernando Pessoa e muitos outros aparecem como vozes que se entrelaçam à sua reflexão, dando corpo ou ajudando a construir esse corpo em movimento da linha. Essas referências, no entanto, não se impõem como autoridade: são partilhadas como companhias de percurso, numa construção coletiva. “Não é uma citação que justifica, mas uma citação que pulsa, que vibra junto”.

Em O corpo da linha, Derdyk propõe pensar o desenho como uma forma de conhecimento sensível e intuitivo. Mais do que uma técnica, o desenho é apresentado como experiência do corpo, gesto de pensamento e modo de habitar o mundo. “Desenhar não é apenas traçar, é inscrever-se, é um modo de escuta, uma forma de estar presente”. O desenho como a língua mais antiga, “tão antiga  e tão permanente que atravessa o arco das civilizações, nosso convívio coletivo.” 

Uma das ideias centrais do livro é que o corpo está presente em todo gesto de desenhar: “O corpo inteiro está na ponta do lápis…” E não só o corpo físico, mas também o corpo simbólico, poético, político. “A linha é o corpo em estado de pensamento. É o corpo que pensa enquanto se move”. Ao desenhar, traçamos caminhos, criamos sentidos, fazemos escutas visuais, deixamos nosso rastro no mundo. 

Derdyk questiona as hierarquias tradicionais que opõem palavra e imagem, pensamento racional e sensível, teoria e prática. “O desenho não é ilustrativo, é constitutivo. Ele não representa, ele apresenta”. Recusa a normas que aprisionam os desenhos e o livre pensar, que reduzem nossas possibilidades de habitar o mundo. “Escapar da submissão do gesto que, sob o comando do olhar, por vezes subjuga todos os outros sentidos à informação da linha como contorno, e a decorrente suposta fidelidade ao referente, será aqui o nosso aprendizado, o nosso desafio.”

Para nos guiar por esse desafio de abandonar a ideia de linha como contorno, as formas fixas e estáticas, herança da linha cartesiana, a autora propõe dezoito novas possibilidades de linhas, cada uma acompanhada por citações que as disparam: linha-lama, linha-imensurável, linha-membrana, linha-aparição, linha-cartopográfica, linha-deriva, linha-é, linha-acontecimento, linha-emancipada, linha-performativa, linha-horizonte, linha-transitiva, linha-rasura, linha-nômade, linha-projétil, linha-fantasma, linha-teia e linha-destino. 

O livro também é uma defesa da potência do fazer manual, da lentidão, da atenção ao detalhe (práticas que resistem ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo), e da valorização do erro como potência. “A linha que erra abre possibilidades. O erro, nesse contexto, não é falha, é desvio criativo”. O traço vacilante, a linha que hesita, o gesto interrompido: tudo isso ganha valor como parte do processo. Assim como a vida, o desenho é feito de incertezas. E é justamente aí que reside sua força.

Por fim, O corpo da linha não é somente um livro sobre desenho. É uma obra sobre o gesto de existir com atenção, curiosidade e entrega. Um convite à escuta, ao movimento e à presença. Como diz Derdyk: “O desenho é o intervalo entre o olhar e o gesto. É o tempo suspenso do corpo que pensa”. Só com um olhar atento, presente e curioso — entregue à escuta e ao movimento — é que podemos caminhar juntos. E só caminhando juntos, numa construção coletiva, é que podemos chegar a um lugar que interesse: a novas possibilidades de futuro.

*Tatiana Eskenazi (São Paulo, SP) é fotógrafa, poeta e escritora. Publicou os livros de poemas “Seu retrato sem você” (Quelônio, 2018) e “Na carcaça da cigarra” (Laranja Original, 2021). Ministra cursos e oficinas literárias e colabora com revistas e jornais.


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