Page 62 - artebrasileiros-62
P. 62
ARTISTA MARLENE COSTA DE ALMEIDA
a fisicalidade e a transcendência das terras do mundo recomeçar tudo, escolheria de novo a filosofia para
e com isso dar sentido e beleza a esse sopro, a esse poder ser artista e pesquisadora”. Marlene revela que
encantado e pequeno lapso de tempo que constitui a sua estrutura ideológica também vem da filosofia. Ela
vida humana nesse planeta, nessa terra”. sempre foi uma notória militante política de esquerda.
Olhando pelo retrovisor, a artista não sabe precisar A sabedoria ancestral dos indígenas é exaltada por ela
em que momento decidiu viver para essas empreitadas. ao lembrar que alguns povos originários trabalham com
“Não sei se eu estava no ateliê, olhando para uma tela a argila onde estão assentados e nomeiam seu território
em branco e pensei: eu não quero mais essas tintas, eu pela cor do solo. “A argila da região de Tabatinga, que é
preciso ir a uma barreira buscar terra para fazer uma um nome indígena, quer dizer terra branca. A de Tauá
tinta especial. Ou se estava no Cabo Branco, onde vi significa terra colorida e apresenta uma gama infinita
uma terra linda e decidi levar para o ateliê e fazer uma de cores. Há muitos nomes de territórios decorrentes
tinta”. De qualquer maneira, o Cabo Branco, esse ponto da coloração do solo”.
mais setentrional do mapa brasileiro, é o marco afetivo O museu que ela pretende criar em João Pessoa,
de sua obra. Marlene não leu Lucy Lippard, a crítica de com todos seus achados e estudos, será uma extensão
arte estadunidense, mas, como ela, enfatiza a neces- do seu trabalho que agora se conecta com o resto do
sidade de estabelecer relação singular com o entorno, mundo. “Desde o início de minha pesquisa, contei com
para dar conta da imaginação geográfica. fontes maravilhosas. Hoje a internet potencializa ainda
O desejo insaciável de descobertas foi a força motriz mais as minhas buscas”. Marlene cita grupos de estudos
para ampliar sua pesquisa, que ela só foi entender muito no Chile que fazem um estudo importante sobre as argi-
tempo depois. “Além de pesquisadora, esse trabalho las. “Em Portugal também há pesquisadores com bons
me tornou colecionadora de terras”. Marlene fala do estudos de pigmentos. Atualmente temos a possibilidade
estudo das cores como algo muito amplo, e que come- de discutir o trabalho com um olhar muito mais amplo”.
çou com os filósofos da antiguidade. “Eles ao mesmo Com todas as mudanças climáticas violentas, per-
tempo estudavam medicina, farmácia, geologia, geo- gunto se as cores também foram modificadas nesses
grafia. Esses cientistas anotavam não só uma cor no mais de 50 anos. “Não, porque 50 anos em geologia
códice, mas também a receita de como prepará-la e, é um tempo muito curto. No início da década de 1980,
com o mesmo material, ainda registravam como fazer na Chapada do Araripe, no Ceará, encontrei argilas
um remédio”. Essa mistura de ciência e cultura está no verdes, muito difíceis de serem localizadas. Muito tem-
começo do estudo das cores que se move num campo po depois voltei depois ao mesmo local e encontrei a
muito vasto. “A química tem importância decisiva, por- mesma formação ainda com as argilas verdes que eu
que temos que saber o que é o material e como aquele havia coletado 40 anos antes. O tempo geológico é
material se transforma”. Para ela a alquimia também tem lento, um tempo diferente”.
seus encantos porque a ideia de transmutar as coisas, O ateliê de Marlene causa espanto a qualquer pes-
de transformá-las de um modo mais poético, é mágico. soa não familiarizada com a geologia e acostumada a
“Aristóteles falou das cores, assim como Vitrúvio, Plinio, pensar a terra com a cor marrom. Eu mesma conheci a
o Velho, muito antes de Cristo. Para mim, a filosofia coleção nos anos de 1980 e me impactei. Seu acervo de
estrutura tudo na vida de uma pessoa. Se hoje eu fosse pigmentos colocados em frascos já passa dos milhares
62