Page 8 - ARTE!Brasileiros #60
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CARTA DA EDITORA
por patriCia rousseaux, dirETorA EdiToriAl
esCrevo este eDitorial num momento profissionais que hoje vemos dirigindo insti-
crítico da história recente do Brasil. tuições culturais são provenientes do mercado
Nos dias 22 e 23 de setembro, apresen- financeiro ou do setor empresarial, com a des-
tamos, em parceria com o Sesc, o Seminário culpa ou a necessidade de garantir que seus
Cultura, Democracia e Reparação, na unidade privilégios continuem existindo. Dessa forma,
da Vila Mariana, em São Paulo. um circuito perverso coloca nas mãos da compra
Esta edição traz algumas das questões e da venda algo que deveria estar a serviço de
centrais colocadas pelos palestrantes (o todos. Nos últimos quatro anos, em que o Estado
Seminário, gravado na sua íntegra, poderá cortou investimentos, as instituições tiveram
ser assistido gratuitamente nos canais digi- que optar por parar com parte das iniciativas
tais de arte!brasileiros e do Sesc) e pelos participativas, cortar equipes curatoriais, progra-
colaboradores. Quando for lançada a revista, mas educativos, conferências e performances.
ainda não saberemos o resultado das eleições presidenciais em Chegamos a um novo impasse, cíclico.
segundo turno no país. É necessário criar mecanismos de incentivo à pluralidade
Quem nos conhece, sabe que entendemos a cultura e a arte na cultura, precisamos de conselhos profissionais isentos das
como algo totalmente relacionado à natureza, não em contraponto necessidades do mercado. Os acadêmicos precisam aprender
a ela. A arte como reflexo de nosso tempo, quando apenas a gestão, para dirigir seus esforços de modo que as instituições
contemplação não é mais suficiente. Agora, temos a obrigação consigam um equilíbrio entre os patrocínios públicos e privados.
de pensar a arte e a cultura imbricadas na defesa de um ideal E os profissionais de mercado precisam captar verbas para que
democrático de convivência e refletir como podemos contribuir, isso aconteça, com regras claras.
a partir do nosso pequeno espaço, para a derrocada do obscu- Cito aqui o filósofo Jacques Rancière em Òdio à Democracia,
rantismo e do atraso. É impossível declamar sobre estética e escrito em 2005:
ética, imaginando que podemos nos omitir de maneira alienada. “As leis e as instituições da democracia formal são as aparên-
A arte!brasileiros apoia publicamente a votação para a cias por trás das quais e os instrumentos com os quais se exerce
frente ampla democrática formada por diferentes coligações o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tor-
e movimentos da força popular, contra a candidatura do atual nou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia
presidente Jair Bolsonaro, cujo governo nos assolou durante em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas
estes últimos quatro anos com propostas que bem conhecemos nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas
e que, com o maior cinismo, passa por baixo do pano leis que próprias formas da vida material e da experiência sensível”.
retiram investimentos da ciência, da educação, da cultura, da “O novo ódio à democracia pode ser resumido então em uma
saúde e do meio ambiente, colocando-os a serviço da reeleição. tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a
Afinal, que democracia estamos defendendo? catástrofe da civilização democrática”.
Não bastassem séculos de desigualdade social, de negação Um dos nossos convidados para o Seminário, o filósofo e escri-
do racismo estrutural, de violência indiscriminada contra povos tor Hal Foster, que não pôde viajar e estar conosco, desenvolveu,
originários inteiros, dos anos 1980 para cá o neoliberalismo deu no seu livro O Que Vem Depois da Farsa, a ideia de que esse ato,
lugar a um novo tipo de concentração de poder, não apenas eco- esse ardil, quase cômico e burlesco no qual estamos imersos, FOTOS: CORTESIA GALERIA VERMELHO | CORTESIA MASP | CORTESIA A GENTIL CARIOCA | JOÃO LIBERATO / CORTESIA GALERIA ESTAÇÃO
nômico, mas também de ordem cultural. Ofertas crescentes de poderia ser interpretado como um interlúdio, um interregno, que
soluções para garantir privilégios pipocaram. Bairros fechados em poderia nos dar a esperança de que outro tempo chegará. Nas
condomínios, licenças para usos privativos em locais com perfil palavras dele, “nada está garantido, tudo é luta.”
comunitário, rejeição ao outro e ataques a quem pensa diferente, Temos a oportunidade, em um momento de convulsão polí-
entre alguns exemplos, acabaram por criar um ambiente hostil tica como o que vivemos, de encontrar brechas na ordem social
ao espaço público, que acaba sendo visto não como a base para pelas quais seja possível resistir e reelaborar as regras com que
uma sociedade civilizada, mas sim a exceção. estamos convivendo. Temos a possibilidade de acreditar que
Nestes anos estimulou-se a vocação para o individualismo: na cuidar do outro é uma atitude criativa, assim como construir um
forma de morar, de consumir, de conviver, de criar. A construção projeto curatorial coletivo ou incentivar obras coletivas como as
de grupos sociais cada vez mais fechados, que se retroalimentam apresentadas na documenta quinze, em Kassel. Lá, por meio do
pelo funcionamento e controle de algoritmos que determinam conceito de lumbung, grupos coletivos de trabalho carregaram
quem é quem, quem vale o quê. a intenção de denunciar o fascismo, defendendo a natureza, as
Nessa toada, a arte também foi capturada. Obras viraram diferenças e a amizade. Essa é a tarefa que, mais do que nunca,
mercadorias e, numa verdadeira dança de cadeiras, vários dos nos cabe agora.