Page 8 - ARTE!Brasileiros #58
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existe hoje um Desafio para a Cultura Como um toDo, que entendemos passa pelo aprofunda-
mento da discussão sobre como a cultura pode avançar no Brasil e no mundo, no escopo de um ambiente
democrático.
Porque, de que ambiente democrático falamos? Que democracia defendemos após ter confirmado
que prevalece uma “democracia” que continua não reconhecendo o papel devastador de séculos de
racismo, de opressão e autoritarismo, e onde os resultados do colonialismo continuam excluindo apenas
com novas máscaras?
Que democracia é essa que permite aparelhar instituições com grupos repressivos, que faz questão
de cercear a cultura e a palavra e estimula certos grupos religiosos para se instalarem em cargos de
poder, num estado supostamente laico.
De dez anos para cá, se intensificaram os debates sobre várias das lutas identitárias e das grandes
minorias do nosso país e no mundo. A participação cada vez mais relevante do papel da mulher na socie-
por patriCia rousseaux, dIrEtorA EdItorIAl CARTA DA EDITORA
dade, em defesa do direito inalienável ao seu corpo, seja na defesa do aborto, seja contra o assédio; seu
direito à igualdade de reconhecimento econômico e de participação politica. Seu empoderamento cada
vez maior tem sido amplamente debatido e noticiado. Tudo isso coloca em pauta a necessidade de maior
presença da mulher nos diferentes estamentos da sociedade.
Exposições como Mulheres Radicais na Pinacoteca (Radical Women, nos EUA), representantes na
literatura como Paul Preciado e Judith Butler; ganhos constitucionais em defesa do aborto em vários
países, possibilitaram enormes avanços na defesa desse papel.
A discussão em defesa da liberdade de escolha de gênero, liderada pelas comunidades lGBtQIA+,
as questões ambientais, a luta pela autonomia das comunidades indígenas e pelo reconhecimento das
suas terras e, por fim, uma verdadeira aceitação por parte da sociedade sobre a necessidade de encarar
o debate, no Brasil, sobre a brutal história do racismo - negado e apagado por séculos no passado e
persistente em nosso presente colonial, capitalista - trouxeram um fortíssimo movimento paralelo às
tradicionais governanças institucionais e corporativas.
Museus se viram pressionados a encarar a contratação de profissionais negros e negras, curadorias
e temáticas estudaram artistas e escritores. Foram excepcionais as exposições coletivas Histórias afro -
atlânticas no Instituto Tomie Ohtake e no MASP.
Editoras começaram a publicar verdadeiras joias literárias que tinham sido esquecidas, como os
livros de Carolina Maria de Jesus, que também ganhou mostra no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
Também são exemplos Pele Negra, Máscaras Brancas, do psiquiatra e escritor francês-caribenho, Frantz
Fanon; Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza; ou Torto Arado, o romance do escritor Itamar Vieira
Junior que acabou de ser adotado pela secretaria de educação da Bahia.
O mercado de arte, claro, “descobriu” a importância da arte negra brasileira e começou a prestar
atenção em excepcionais artistas nacionais que foram rapidamente reconhecidos ao serem descobertos
pelo público internacional e hoje estão em coleções como Inhotim, em Minas Gerais, ou Pinault, em Paris.
O professor e escritor Márcio Seligmann-Silva afirma em seu artigo nesta edição (leia na página 16):
“Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a his-
tória da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias
de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo
claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista
José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”,
que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em
chamas na primeira metade dos anos 1940” (Adorno & Horkheimer 1986).
Após anos de ditadura, votar, claro, foi uma conquista, mas parece não ser suficiente. É necessário criar
ferramentas de controle para a participação dos corpos, sugerir sistemas e debates em cima da importância
de criar mecanismos econômicos para uma sociedade mais igualitária, criar ferramentas de reparação.
Uma das maiores ensaístas e pensadoras latino-americanas, Beatriz Sarlo, que neste mês faz 80 anos,
falou em entrevista à Ñ rEvIStA dE CUltUrA, 964, do Jornal Clarín da Argentina:
“O julgamento das três Juntas Militares, que foi encarado por pouquíssimos países após as
ditaduras militares, foi um momento fundamental e de grande fortaleza ética da democracia,
e requereu grande valor cívico, ético e subjetivo.”
A função do testemunho tem uma dimensão reparatória, na medida em que verbaliza e produz o reconhe- FOTOS: ARQUIVO PESSOAL | CORTESIA GALERIA LUISA STRINA | COLEÇÃO DE ARTES VISUAIS IEB-USP | EVELSON DE FREITAS
cimento social de uma história traumática. No Brasil, depois de dez anos, demonstrou-se que a criação
de cotas na universidade deu certo, permitindo que grandes setores da população negra conquistassem
melhoras no ensino e nas suas condições de emprego e salários.
Ao mesmo tempo iniciou-se um movimento em vários países europeus restituindo obras que foram
levadas de seus países de origem:
“Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Daho-
mey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas
ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está
em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.”
(Paris, restauro e cultura da memória, edição 57, arte!brasileiros).
A Smithsonian Institution em Washington, D.C concordou em devolver a maior parte de sua coleção de
bronze de Benin para a Nigéria como parte de um importante acordo de restituição, pressionando outros
museus em todo o mundo a seguir o exemplo.
arte!brasileiros dá a largada então, para incentivar este debate no Brasil. Nesta edição, escolhemos
um elenco especial de pensadores, críticos de arte, historiadores, psicanalistas e jornalistas que trazem,
a partir de diferentes perspectivas, elementos para esta discussão e que tem como objetivo convocar
desde já para a realização do nosso vII Seminário: Cultura, Democracia e Reparação, a ser realizado na
terceira semana de setembro.
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