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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
MOMENTO ESTÉTICO
E O TEMPO ÉTICO DA
REPARAÇÃO DEMOCRÁTICA
A partir de diferentes ocorrências históricas e de conceitos da
psicanálise, autor discute a ideia de luto infinito – comum aos
casos de perdas coletivas – e fala da necessidade de reparação
por Christian Dunker
nos aCostumamos a pensar que não são superáveis pela força perdemos o espírito de uma
o luto como processo finito, ou intensidade da dor, mas pela nação, muitas vezes recorremos,
limitado e circunscrito no tempo. deliberação, mais ou menos ao longo da história, a um nome
Quando se estendem por muito consciente, de que neste caso, para o que foi perdido:
tempo tornam-se suspeitos e neste luto, não haverá fim. Ele se democracia. Alguns dirão que a
flertam com o patológico. Ainda ligará perpétua e deliberadamente ideia de democracia originada na
assim há lutos que atravessam a outros lutos sem fim, sem corpo, antiguidade realizou-se em
gerações em torno da escravidão, sem túmulo. Um luto finito torna- instituições da modernidade.
do desaparecimento político, da se infinito por muitas razões: uma Outros argumentarão que esta é
violência de Estado. Há lutos vida perdida elevada a dignidade uma realização incompleta, pois a
traumáticos que tocam cidades de Coisa, valor comum para vidas democracia permanece como
inteiras como Mariana ou Santa vindouras, ideal heroico, santo, ideal, ou seja, a ideia de uma
Maria. Há lutos pela perda da terra, sábio ou guerreiro que mimetiza comunidade por vir, capaz de ser-
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do corpo e de nosso modo de vida, a imortalidade como figura para-todos e a todos incluir .
como o que afetou indígenas e do infinito. Outros ainda consideram que a
ribeirinhos como os afetados pela Mas há também lutos que são aplicação da ideia de democracia
barragem de Belo Monte em patologicamente finitos. Aliás, a pessoas e ideias é uma
Altamira. Para Freud, o luto é um este é a resposta neurótica diante falsificação do termo. Democracia
dispositivo de simbolização e um da perda: individualizar culpados, nunca existiu, logo nunca existirá.
afeto normal. Mas o que seria odiar para esquecê-los, expedir É só um nome que damos a certos
exatamente um afeto normal? regras na ilusão de “desacontecê- regimes políticos não
Não seria melhor reservar para los”, finalmente, desimplicar-se de autocráticos. O Brasil dos anos
certas situações irreparáveis a partilhar, coletivamente, as razões, 2013-2020 tem sido descrito
noção de luto infinito? causas e motivos da perda. como um país em democracia
Reconhecendo que nelas a perda Depois disso é só esperar por regressiva, ou seja, marcado pela
é indefinidamente não outra maldade do Outro, ou por precarização do funcionamento
individualizável, não simbolizável outro vacilo do sujeito. institucional, retração do uso livre
nem substituível? Em Freud tais Perder uma pessoa, uma da palavra e violação de direitos
lutos incuráveis são marcados nação ou um ideal faz diferença, humanos. Perdas que demandam
pela violação da ordem geracional ainda que o luto se aplique aos lutos locais, mas que se conectam FOTO: PATRICIA ROUSSEAUX
dos desaparecimentos, por três casos indistintamente. com a cadeia de lutos infinitos que
exemplo o luto de um filho. Lutos Quando perdemos pessoas e organiza e define uma
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