Page 70 - ARTE!Brasileiros #49
P. 70

EXPOSIÇÕES SÃO PAULO

             NA MODESTA ENTRADA DA RUA ÁLVARO DE         a Era Vargas, presidente homenageado com busto
             CARVALHO, 427, no centro de São Paulo, é dona   na entrada, que desapareceu ao longo da histó-
             Irene Silva quem faz as honras da casa. Moradora   ria recente. Desde 1997, ocupações passaram a
             de lá, é ela quem cuida da entrada, durante o dia,   ocorrer ali, depois de 20 anos de abandono, e a
             por onde cerca de 500 moradores de 120 famílias   atual, organizada pelo MSTC, teve início em 2016.
             passam diariamente para entrar na Ocupação 9   Nela, artistas vêm colaborando de forma orgânica
             de Julho, gerida pelo Movimento Sem Teto do   desde o início. O Aparelhamento, por exemplo, que
             Centro (MSTC).                              surgiu em 2016, quando a Funarte começou a ser
             Além da entrada, dona Irene também cuida do   desativada pelo governo Temer, ajudou a organi-
             jardim e da horta da ocupação, “mãos ótimas   zar a cozinha comunitária, que prepara almoços
             que quando plantam tudo dá”, como escreveu o   festivos uma vez por mês, e tem sido importante
             artista Lourival Cuquinha, ao responder minha   para a manutenção das condições do edifício.
             mensagem solicitando o nome dela.           Na galeria, quem fala das obras é Felipe Figueiredo,
             É dona Irene, com sorriso no rosto, que indica   monitor e ativista que vive na Ocupação desde
             como chegar na galeria Reocupa, onde ocorre   seus primeiros momentos, em 2016, e que sabe
             a mostra O Que Não é Floresta é Prisão Política,   não só de cada trabalho, mas da própria história
             com cerca de cem artistas, entre eles o próprio   do movimento. Ele desenvolve sua narrativa con-
             Cuquina. Arte no vão central de um espaço de   tando desde a importância de levar colchões nas
             resistência. Eu me senti em Bacurau.        primeiras horas de uma ocupação a estimular o
             A mostra, em cartaz de quarta a domingo, das 14h   visitante a ouvir Serenata de Amor, de Georgia
             às 20h, ocorre desde setembro com 74 artistas,   Miessa, uma compilação de canções machistas
             sendo que outros 15 foram agregados em outubro e,   na música popular brasileira, desde 1920.
             agora em novembro, outro grupo será adicionado.   Vivendo na Ocupação, Felipe garante um vín-
             Não se sabe exatamente até quando a mostra per-  culo estreito entre produção artística e seu con-
             manece, mas é seguro que segue até o fim do ano.   texto. Não que os trabalhos sejam colocados ali
             Artista é o termo adequado para denominar quem   alheios ao espaço, como se ele fosse um cubo
             dela participa, mesmo que nem todos ali têm na   branco. Longe disso. Mas é justamente esse cará-
             arte sua principal atividade. Há desde figuras   ter vital desencadeado pela ocupação que dá
             reconhecidas internacionalmente no circuito da   particularidade e relevância, e a voz de Felipe
             arte, como Ernesto Neto e Renata Lucas, em meio   é essencial. Mas entrar na Reocupa é também
             a outros que vivem e produzem na própria Ocu-  sentir o cheiro das comidas sendo preparadas
             pação, enquanto outros se destacam em áreas   nos andares acima, dos produtos de limpeza em
             próximas, como a fotojornalista Marlene Bergamo   uso, é ouvir as crianças brincando, é ver o tempo
             ou o filósofo Peter Pál Pelbart. No entanto, ali   desgastando um edifício que já foi público e se
             é o lugar mais adequado para por em prática a   encontrava abandonado. Tudo muito distante
             famosa expressão de Joseph Beuys, que “todo   dos espaços tradicionais e higienizados da arte.
             ser humano é um artista”.                   Tudo muito mais potente.
             Apesar dos 89 nomes indicados nos mapas que   Não só o ambiente é libertário, como as próprias
             indicam a disposição das obras na mostra, ao   estratégias de curadoria, a começar pela seleção
             menos outras duas dezenas também participam   do nome da mostra. Quando desce do primeiro
             com intervenções ao longo de outros oito anda-  andar para a Reocupa, pode-se ler a troca de
             res da ocupação – a galeria Reocupa é de fato   mensagens no grupo de artistas que participam
             no térreo do edifício, onde está a entrada para a   da mostra para a escolha do nome. “É a nossa
             avenida 9 de julho, que não se encontra em uso,   vaza-jato”, explica Cuquinha, ao descrever o pro-
             e todo seu entorno.                         cesso de transparência assumido, mesmo que
             Com 14 andares, o prédio foi construído como   os nomes estejam apagados. O importante é o
             sede do INSS em São Paulo, inaugurado em 1943.   processo, afinal.
             Projetado por Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício   A maioria dos artistas ali presentes tem colabo-
             é um dos ícones da arquitetura paulistana durante   rado na ocupação de forma atuante e sistemática,


            70




         Book_ARTEBrasileiros_49.indb   70                                                                       14/11/19   00:57
   65   66   67   68   69   70   71   72   73   74   75