Page 12 - ARTE!Brasileiros #49
P. 12
DENTRO DO FURACÃO
POR PATRICIA ROUSSEAUX, DIRETORA EDITORIAL
ESTA É A ÚLTIMA EDIÇÃO DO ANO DE 2019, um arquivos, suportes e temáticas que os ajudem a falar.
ano onde todas as áreas produtivas neste país tiveram As lutas raciais, de gênero e contra a censura estive-
que trabalhar além de suas forças, em um ambiente ram presentes, ao longo do ano, nas obras de bienais,
mesquinho. Foi um ano de dificuldade econômica como a do Sesc_Videobrasil, nos prêmios, tanto no
para a maioria da população. Não fosse suficiente, Marcantonio Vilaça como no Pipa, e na maioria das
estamos em meio a uma inacreditável demonstração exposições nacionais.
de pobreza intelectual. Mais de 100 artistas participam de uma exposição na
Dentro da pobreza de pensamento generalizada, o Ocupação 9 de Julho em São Paulo, engajando-se
governo tomou a decisão de transformar a cultura no apoio à luta pela moradia. Aline Motta, uma das
num apêndice do Ministério do Turismo. Talvez tenham ganhadoras do Prêmio Marcantonio Vilaça, faz de sua
pensado: “Vejam, nos guias turísticos há indicações obra uma procura permanente, nas suas raízes, da
de cinemas, teatros e museus, vamos colocar tudo memória coletiva de milhares de famílias brasileiras
junto”. Seria cômico se não fosse trágico. construídas (ou destruídas) no violento processo
Não obstante, enquanto ouvíamos a burrice de inú- de formação do país, baseado na escravidão e na
meras bravatas — algumas que nos fazem retroceder estrutura patriarcal.
décadas na história de nossas vidas e do país —, o que Guerreiro do Divino Amor, ganhador do Prêmio Pipa
nos salvou mais uma vez foi a arte, com sua força deste ano, numa linguagem completamente original
absolutamente inquebrantável. A possibilidade de e de experimentação, dá nome aos bois e denuncia as
ainda ter acesso à cultura permitiu que a população manobras de setores evangélicos fascistas, defensores
se voltasse em massa a exposições em museus e de costumes já ultrapassados, e a responsabilidade
instituições culturais. que certos grupos midiáticos estão tendo nisso.
ARTE!Brasileiros, junto ao Itaú Cultural, conseguiu rea- Nossa capa, obra do artista paulistano No Martins,
lizar um profundo debate sobre várias abordagens que faz parte sem dúvida deste ethos, sintetiza de
e alternativas possíveis para a sustentabilidade das alguma maneira o nosso sentimento, expressado
instituições e a importância da gestão cultural, no também no texto extraído do livro Crítica da Razão
seminário Gestão Cultural: desafios contemporâneos. Negra, da n-1 edições, do camaronês Achille Mbembe:
A partir daí, decidimos dar início a uma série de entre- “Humilhado e profundamente desonrado, o negro
vistas que nos permitam ouvir e acompanhar outras é, na ordem da modernidade, o único de todos os
vozes de forma permanente. Cada vez mais se reforça humanos cuja carne foi transformada em coisa e
a ideia de uma instituição cultural participativa, capaz o espírito em mercadoria a cripta viva do capital.
de envolver a população em suas causas, e não apenas Porém — e esta é sua patente dualidade —, numa
um espaço de contemplação. reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um
Nessa função mesquinha, o Estado só aprofunda as desejo consciente de vida, força pujante, flutuante
cicatrizes de séculos de discriminação e violência e e plástica, plenamente engajada no ato de criação
abre caminho para mais violência. Na arte a resposta é e até mesmo no ato de viver em vários tempos e
uma denúncia ativa. Os artistas buscam se expressar, várias histórias simultaneamente”.
definitivamente, estética e eticamente. Pesquisam Assim como No Martins, nós dizemos BASTA!!!
Book_ARTEBrasileiros_49.indb 12 14/11/19 00:55