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como “lugar de memória da resistência” – é o Centro   mais de 60 fotografias e mais de 100 documentos, car-
            MariAntonia. Em cartaz a partir do dia 19 de março, a   tazes, folders, obras de arte, publicações de época etc.
            mostra “Paisagem e poder: construções do Brasil na   pela primeira vez reunidos. Aberta em abril, a mostra
            ditadura”, se debruça sobre um aspecto fundamental,  permanecerá em cartaz por seis meses.
            porém menos elaborado, dos efeitos deixados pelos   A conexão entre memória e apagamento, constru-
            mais de 20 anos de autoritarismo no País: a forma como   ção e desconstrução de discursos ideológicos que
            os sucessivos governos militares alteraram a espa- perpassam as mais diferentes dimensões da sociedade
            cialidade no país, consolidando um modelo de maior  não é um campo fértil de trabalho apenas para pesqui-
            integração regional, instituições muito centralizadas   sadores, mas também para os artistas. Em outubro do
            de planejamento e intensificação das desigualdades.   ano passado, Rivane Neuenschwander exibiu em São
               “Eles agiram com mão pesada, impondo um modelo   Paulo um conjunto de obras em que revisita memórias
            de desenvolvimento a qualquer custo e sufocando muitas   e traumas conectados ao uso político do medo, dan-
            vozes”, explica José Lira, diretor do MariAntonia e cura- do continuidade a uma pesquisa que iniciou em 2014
            dor da mostra juntamente com outros pesquisadores   acerca das memórias e temores infantis. Parte dessa
            convidados e – como ele – vinculados à Faculdade de   pesquisa também será mostrada na grande exposição
            Arquitetura e Urbanismo da USP. Trata-se de uma expo- que a artista deve fazer a partir de outubro, em Inhotim.
            sição histórica, documental, que se dividirá em quatro   Durante muito tempo Rivane colecionou depoimentos
            eixos principais, que funcionam como camadas de um   de memórias sobre o período da ditadura e algumas
            mesmo processo: a transformação nas cidades e nos   dessas histórias foram ressignificadas na forma de
            modos de morar, com o surgimento das periferias e a   trabalhos. “Funciona como um novelo de lá que você
            generalização das favelas por todo o país; a relação entre   vai desenrolando”, conta a artista. Há histórias impres-
            industrialização e mineração; projetos de integração e   sionantes, como a referência à prisão e tortura de nove
            expansão regional, que acabam sendo responsáveis   chineses pouco antes do golpe, acusados de subversão
            pela prosperidade material do centro-oeste e da Ama- e de tentar “assassinar” o então governador da Guana-
            zonia e consolida no nordeste um modelo agropecuário   bara, Carlos Lacerda, com agulhas de acupuntura. Seria
            amparado nas velhas oligarquias; e o desenvolvimento   risível se não fosse dramático, gerando uma interessante
            das rodovias, estradas, como forma de promover a   metáfora acerca dos “pontos de tensão” do organismo
            integração nacional e exploração dos recursos. Além   social brasileiro. Imprensa alternativa, cumplicidade do
            da mostra, que também conta com uma sala específica   empresariado com o golpe, perseguição a religiões de
            sobre São Paulo, serão realizados uma série de eventos,  matriz africana estão entre os fios que a artista segue,
            debates, seminários e um intenso trabalho educativo,  recriando simbolicamente, o que ela chama de “retrato
            oferecendo visitas a escolas e universidades, poten- subjetivo do Brasil daquela época”, relembrando que
            cializando os efeitos de uma pesquisa que se espraia   uma violência que reverbera ainda. E não apenas no
            por muitos temas, como geografia, história, ciências   campo simbólico.
            sociais e naturais.                                Às vezes a ajuda do acaso também contribui para
               Já o ccbb trará, em suas quatro sedes (São Paulo,  que o encontro entre índices de memória se transforme
            Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro), a exposição   em reflexão poética sobre traumas sociais. É o caso,
            Arte Subdesenvolvida. Segundo o curador Moacir dos   por exemplo, do Juliana Kase. Através de um amigo,
            Anjos trata-se de uma investigação, a partir do campo da   chegaram a suas mãos um conjunto amplo de clichês
            arte e da cultura, sobre os desafios do subdesenvolvi- de propaganda do regime militar, que eram distribuídos
            mento no Brasil e núcleos importantes da mostra tratam   por todo o país para veiculação de propaganda dos
            dos efeitos e resistências à violência do golpe e de seu  “feitos” do regime. Ela reimprimiu todo esse material
            posterior endurecimento, com o Ato Institucional n. 5,  e desenvolveu uma longa pesquisa, exibida há alguns
                                                        o
            como os textos Eztetyka da Fome, de Glauber Rocha,  anos no Paço das Artes. “A estética vira ética”, sinteti-
            e Brasil Diarréia, de Hélio Oiticica. Dos Anjos também   zou a artista, enfatizando: “porque mesmo os que não
            está preparando para a Fundação Joaquim Nabuco,  foram vitimados por torturas ou violências praticadas
            em Recife, uma mostra histórica sobre o Movimento   pelo Estado também são vítimas de um condicionamen-
            de Cultura Popular (mcp), que atuou nos primeiros anos   to ideológico e de um embrutecimento das relações
            da década de 1960, até ser fechado pelo golpe. Serão   humanas sem se dar conta.”

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