Page 89 - ARTE!Brasileiros #51
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Kehinde passa a vida em
                                                             deslocamento pelo continente
                                                             africano e pelo Brasil, onde é
                                                             levada à condição de escrava.
                                                             Separada de seu filho, vendido
                                                             como escravo pelo próprio pai
                                                             (um branco escravagista),
                                                             ela narra sua busca por ele
                                                             ao longo dos anos








            Defeito de Cor segue presente, agora em sua 20ª edição.  tornando obra indispensável para os estudos de gênero.
               A personagem Kehinde tem raízes na biografia da   Isso porque é muito latente a condição da mulher e
            mítica Luísa Mahin, heroína negra que teria ajudado   as particularidades das violências vividas por Kehin-
            a insuflar um levante contra o regime escravista na   de não só por ser escravizada, mas por ser do sexo
            Bahia e mãe do abolicionista Luis Gama, que a defi- feminino. Como, por exemplo, a violência sexual que
            niu: “Uma negra, africana livre, da Costa da Mina”. A  tem o corpo da mulher negra como objeto – e que é
            autora conta que o que a levou a escrever o livro foi   um ponto crucial do livro -, já que o estupro é um tema
            ter encontrado casualmente, quando morou na Ilha   que acompanha a personagem no Brasil, quando ela
            de Itaparica (Ba), um manuscrito de Mahin. O livro,  é violada, e também no continente africano, quando
            portanto, traz uma narrativa que estende o que fora  viu a mãe sofrer a mesma violência.
            registrado por Luísa, escrava de ganho que sabia ler   A identidade da mãe negra da personagem “conec-
            e escrever, nesse manuscrito.                    ta-se a outras narrativas de mães negras no Brasil,
               Assim, a trama ficcionalizada de Ana Maria Gon- as quais também são apartadas de seus filhos, mas
            çalves se confunde por várias vezes com a História.  que, diferentemente da narradora do romance, não
            Kehinde passa a vida em deslocamento pelo continente   raro deparam-se com os corpos inertes desses filhos
            africano e pelo Brasil, onde é levada à condição de   assassinados cotidianamente por uma política geno-
            escrava. Separada de seu filho, vendido como escravo   cida do Estado que tem como alvo a população negra
            pelo próprio pai (um branco escravagista), ela narra sua   desse país”, atesta a pesquisadora Fabiana Carneiro
            busca por ele ao longo dos anos. O tom memorialístico   no livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito
            usado na narração do texto, contado por Kehinde em   de cor (Editora Edufba, 2019).
            primeira pessoa, dá ao livro um caráter autobiográfico   Ao falar do livro, a autora sempre aponta a neces-
            dessa mulher que é levada a uma situação epopeica   sidade de se recorrer ao passado para compreender
            ao insistir em ter o filho de volta. É também um pedido   com afinco a história de nosso país. Ler Um Defeito
            de desculpas de uma mãe que teve o menino levado   de Cor é, sem dúvidas, conhecer para questionar
            sem nada poder fazer para impedir.               criticamente um período condenável da construção
               É preciso pontuar a importância de Um Defeito de   do Brasil, que é a origem da característica estrutu-
            Cor nos estudos afrofeministas, pois evoca a vivência   ralmente racista que acompanha a nossa sociedade
            de mulheres que foram escravas/escravizadas, se   em todas as relações.

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