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ARTIGO CULTURA E POLÍTICA






            UM PAÍS ESGOTADO








                       Para aqueles que reconhecem e sentem em seus corpos
                       a gravidade da crise vivida no Brasil, em suas várias
                       dimensões, é cada vez mais frequente sentir-se esgotado

                       por moaCir Dos anJos










            1. Em um de seus últimos textos, Gilles Deleuze   2. No exame próximo que faz de cada uma das
            produziu uma breve e densa análise das peças    peças televisivas de Beckett, Deleuze aponta quatro
            teatrais que, na década de 1960, Samuel Beckett   modos – não mutuamente excludentes – de
            escreveu para serem filmadas e exibidas na      promover o esgotamento do possível: Exaurir as
            televisão. Para compreendê-las – e delas extrair   coisas que podem ser nomeadas, estancar o fluxo
            novos conceitos –, o filósofo francês propunha,    de vozes que as falam, extenuar as potencialidades
            em seu ensaio, a distinção entre o cansado e o   do espaço onde elas existem e dissipar a potência
            esgotado, entre o cansaço e o esgotamento. Desde   contida em suas imagens. Extrapolando o objeto
            logo haveria, entre os dois estados, uma diferença   original de seu texto e fazendo uso abertamente
            de intensidade: “O esgotado é muito mais que o   arbitrário dos conceitos nele tratados, essas
            cansado”. Mas o esgotado não seria, contudo,    condições de esgotamento parecem ser
            apenas o extremamente cansado, havendo entre    apropriadas para capturar, mesmo que de maneira
            as duas condições uma diferença outra, irredutível    imprecisa (e talvez por isso adequada), a situação
            a quantificações. O cansado seria aquele que,   vivida no Brasil de agora. Lugar e momento em que
            ancorado em suas preferências e objetivos, exerce,   se entrelaçam uma crise sanitária, uma crise política
            até o limite de suas possibilidades (subjetivas), o   e uma crise econômica com consequências ainda
            poder de fazer escolhas para realizar algo. Escolhas   não de todo conhecidas em sua extensão, embora
           – banais ou complexas, de efeito passageiro ou   já sabidamente muito graves. Situação em que as
            duradouro – feitas dentro do que, a cada tempo e   palavras já não bastam para descrever os fatos
            lugar, é considerado como o âmbito do possível.    e evocar os afetos que eles geram, em que o
            O cansado seria aquele, portanto, que estanca   silenciamento de quem diverge do poder já é
            quando não mais consegue realizar algo que existe   abertamente demandado, em que se desregulam
            como parte daquele campo de possibilidades      e enfraquecem os territórios institucionais
            (objetivas), adiando suas realizações para quando   consagrados ao desentendimento e à disputa e, por
            sentir-se de novo capaz. O esgotado, por sua vez,   fim, em que se contestam as equivalências sensíveis
            seria aquele que, renunciando a preferências e   que descrevem o que acontece nas ruas. Para
            objetivos precisos, experimenta e combina todas as   aqueles que reconhecem e sentem em seus corpos
            possibilidades de escolhas e de suas consequências,   a gravidade da crise vivida no país (em suas várias
            ao ponto de exauri-las. O esgotado seria, nesse   dimensões), é cada vez mais frequente sentir-se
            sentido, aquele que esgota o possível, embora    esgotado. Ou sentir que o Brasil está esgotado. Que
            nem por isso se torne inerte.                   as possibilidades de realização de uma outra vida

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