O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de
O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Após uma primeira mesa focada em olhares para as questões ambientais, os conhecimentos indígenas, a possibilidade de uma ciência “menos fria”, além do questionamento da falsa dicotomia entre natureza e cultura, a segunda apresentação do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros aproximou o debate de questões mais diretamente vinculadas à produção artística. Nas apresentações de Andrea Giunta, curadora da Bienal do Mercosul 12, e da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (que participam da MANIFESTA 13), questões sobre a responsabilidade da arte no mundo contemporâneo, a busca de um fazer coletivo, a visibilidade de saberes marginalizados e a necessidade de fugir da lógica do “corpo autocentrado” nas artes reforçaram uma linha condutiva entre as diferentes falas.

Primeira a apresentar, Giunta traçou um panorama da edição deste ano da Bienal do Mercosul (Bienal 12 Online), que aconteceria presencialmente em Porto Alegre e acabou migrando para o ambiente virtual por conta da pandemia. Destacando a pluralidade envolvida nas temáticas e no próprio título da mostra, Feminino(s). Visualidade, ações e afetos, a argentina ressaltou a importância desta diversidade estar presente na própria constituição da equipe curatorial da bienal. Nesse sentido, frisou o papel fundamental de Fabiana Lopez, Dorota Biczel e Igor Simões, que trouxeram olhares atentos à produção artística especialmente latino-americana, mas também de outros países do globo. Foram ao todo 25 países representados por mais de 70 artistas e coletivos.     

O termo “feminino(s)” – e não “femininas”, nem “feminismos” – representou para Giunta essa escolha por uma pluralidade de pontos de vista, nem sempre só de mulheres, acreditando na “ideia da diferença como multiplicidade e não como separação”. Nesse sentido, a palavra “afeto” também ganhou espaço, ainda mais em um momento de tamanha fragilidade com a pandemia. “E quando ficamos todos isolados, foi muito importante perguntar: como estão os artistas que estavam prestes a viajar para Porto Alegre e não puderam ir? Então pedimos que eles gravassem pequenos vídeos com o celular para o nosso site, o que foi muito importante. Isso criou um arquivo de afetos, um tipo de presença dos artistas na bienal que não tínhamos planejado anteriormente. São algumas coisas boas que aconteceram.”

Sobre La Familia en el alegre verdor, obra de Chiachia & Giannone exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

O afeto, como afirmou Giunta em entrevista recente à arte!brasileiros, não está desconectado das lutas, protestos e de uma arte que clama por mudança social. “Com afetos, poderosas revoltas foram criadas”, disse. Neste sentido, Giunta apresentou no seminário uma série de trabalhos que considera representativos das temáticas tratadas na bienal, a começar por uma tapeçaria de Chiachio & Giannone que apresenta uma cena de integração entre o homem e a natureza, onde pessoas e animais fazem parte de uma mesma família – “não o homem como dono, controlando a natureza, mas o homem em natureza”. Em seguida, a curadora apresentou uma fotografia do coletivo feminista argentino Nosotras Proponemos: “Levamos em conta os ativismos, os direitos das mulheres, mas também os femininos e os feminismos como a necessidade de pensarmos novamente todas as relações entre o humano e o mundo”, disse

Ressaltando que “a luta do feminismo é uma luta pelos direitos sobre o próprio corpo”, ela apresentou ainda trabalhos que tratam do feminicídio, como o de Fatima Pecci Carou, e das variadas formas de experimentar o corpo, como nas obras de Jota Mombaça, Liuska Astete, Janaina Barros, Lorraine O’Grady ou Priscila Resende. A possibilidade de uma reestruturação da linguagem no campo da discussão de gênero surgiu na produção das Mujeres Públicas, enquanto questões cruciais sobre a memória – e especificamente a memória colonial e afrobrasileira – foram tratadas na obra de Aline Motta. Neste ponto de sua fala, Giunta relembrou uma frase de Rosana Paulino, “que me disse uma coisa muito importante relacionada com o tema deste seminário: nas tradições cristãs e católicas, baseadas na bíblia, Deus deu a natureza para os homens; nas religiões afrobrasileiras, o homem e a natureza estão juntos”.

Psicanálise do cafuné catinga de mulata, de Janaína Barros, obra exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Irlanda, França e norte da África em diálogo

Dando sequência à uma série profícua e diversa de produções audiovisuais filmadas em diferentes cantos do globo, a dupla Bárbara Wagner (Brasil) e Benjamin de Burca (Irlanda/Alemanha) acaba de estrear, na MANIFESTA 13, em Marselha, a obra One Hundred Steps. O filme, de 30 minutos, foi o tema da apresentação da dupla no seminário, que contou ainda com a exibição em primeira mão de trecho do trabalho. No seminário virtual, enquanto Benjamin apareceu com seu celular na Escola de Música de Marselha, expondo o término da montagem da obra, Bárbara falou de sua casa sobre o processo de produção do filme, iniciado ainda no final de 2019. Alguns dias depois do seminário a arte!brasileiros conversou por telefone também com Benjamin. 

Após trabalhos sobre o frevo ou o brega em Recife, sobre os gêneros maloya na Ilha de Reunião (departamento francês próximo à África), schlager em Munster (Alemanha) e rap em Toronto (Canadá), a dupla adentra os universos da música popular irlandesa (com suas gaitas, cantos e sapateados) e da música norte-africana de raiz árabe em Marselha, no sul da França. Se de um lado o filme aprofunda a pesquisa da dupla em universos musicais marginalizados, num diálogo constante entre documentário e ficção, entre o que é cultura pop ou manifestação tradicional, de outro o filme parece trazer elementos inéditos ao trabalho de Bárbara e Benjamin. One Hundred Steps é, por exemplo, o primeiro filme que se passa em dois países distintos e que adentra de modo contundente a história colonial europeia e africana.   

Segundo Bárbara, a pesquisa teve início com a aprovação de um projeto de financiamento público do Irish Arts Council. Surgiu, deste modo, a primeira oportunidade para a dupla desenvolver um trabalho no país natal de Benjamin. Foi na pesquisa pela região irlandesa de Connemara que eles se depararam com o trabalho do documentarista irlandês Bob Quinn. “Nos anos 1980 ele desenvolveu um quarteto de documentários que falava da origem da cultura irlandesa de um jeito muito sofisticado, questionando a hegemonia europeia na formação da cultura de lá e sugerindo que o contato com países do norte da Africa foi fundamental”, contou a artista. Na série, intitulada Atlantean, “ele pergunta: e se a nossa cultura irlandesa estiver muito mais próxima da África do que da Europa?”.

Cena de One Hundred Steps filmada em Marselha; trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca integra a MAMIFESTA 13. Foto: Divulgação

Partindo dessa hipótese e do convívio com Quinn, hoje com 87 anos, Bárbara e Benjamin tinham um projeto inicial em mente até o momento em que o convite da MANIFESTA veio para “dar uma amarrada formal no trabalho”, segundo Bárbara. Ao fim, o filme se tornou “uma espécie de experimento visual e de montagem entre a Irlanda e o sul da França, em diálogo com o norte africano”. A dupla convidou, para isso, artistas populares para performarem em dois espaços emblemáticos para a história colonial nestes locais – palácios que se tornaram museus -, criando ambiguidades, atritos e momentos de beleza com várias camadas de sentido.

Na Irlanda, músicos e dançarinos foram filmados em espaços da Bantry House, palácio do fim do século 17 diretamente relacionado ao imperialismo britânico no país e que, além de um jardim suntuoso, possui uma escadaria de 100 degraus – os “hundred steps” do título – construída entre 1840 e 1850, a década da grande fome irlandesa. “Em cada canto da Irlanda tem uma mansão enorme construída pelo povo que estava morrendo. E se formos pensar, essa grande fome, que criou uma diáspora de quase 2 milhões de pessoas, ainda é muito recente na história do país”, diz Benjamin. Os artistas que entram na casa, portanto, – e Bob Quinn aparece ali com sua câmera – “se transformam nessa outra voz, que é a voz da cultura irlandesa”, segundo Bárbara.

Em Marselha, por sua vez, uma casa museu em uma antiga residência burguesa, “com uma história similar, apesar do contexto bastante diferente”, serviu de palco para a performance de músicos norte-africanos radicados na cidade. “Então a gente criou uma forma de aproximar, sem necessariamente estar comparando. É uma especulação, novamente, mas sobretudo rítmica e musical”, explica Bárbara. Se a cultura árabe do norte da África surge explicitamente na casa em Marselha, ela também pode estar difusa na música irlandesa que, segundo Quinn, bebeu dessas raízes. “E de repente a gente olha para esses artistas, como se fossem visitantes, os irlandeses e os árabes, e o filme cria esse dispositivo fantástico em que a gente consegue perceber a ocupação desses espaços com outra história”, conclui a artista. Porque, segundo Benjamin, “o colonialismo continua existindo de outra forma, mais mental, mais imaterial”.

Nas falas ao final da mesa, Andrea Giunta ressaltou, em consonância com a apresentação de Bárbara e Benjamin, que “a arte tem a capacidade de ser um arquivo, um arquivo de experiências que foram criadas em diferentes momentos. E com este arquivo podemos fazer as perguntas do presente”. Além disso, para ela é preciso repensar a relação do corpo com o mundo, no sentido de se afastar da ideia do sujeito autocentrado tão comum na arte – “para compreender, experimentar e sentir que nós estamos no mundo”. Ao que Bárbara concordou: “No sentido do corpo que experimenta uma outra forma de conhecimento, que é partilhado. Nosso trabalho é um trabalho audiovisual que se sustenta na colaboração. Não dá pra fazer trabalho sozinho, não dá para fazer sem atrito, sem diferença”.

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