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Arjan Martins: “Colecionismo negro é quase uma intenção utópica de público alvo para mim”

O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro. Foto: Pepe Schettino
O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro (s/d). Foto: Pepe Schettino

O recente (e crescente) sucesso de artistas negros no Brasil e no mundo tem levado o pintor Arjan Martins, 62, a uma ponderação. Para ele, a nova geração “ganhou muito dinheiro precocemente”, mas ainda precisa pensar seu projeto artístico e fazer uma reflexão sobre “as grandes galerias, os fortes braços do mercado”. Vencedor do Prêmio PIPA em 2018, objeto de um livro sobre sua trajetória, lançado pela Cobogó, no ano passado, Arjan acumula ainda em seu percurso artístico participações em bienais (São Paulo, Dakar e Mercosul, entre outras), celebra 20 anos de carreira em 2022 – sua primeira individual, em 2002, no Museu da República, é o marco zero – e vem colocando, para si a mesmo, pergunta que faz agora, em entrevista à arte!brasileiros, a seus jovens pares:

“Vocês não gostariam que sua produção migrasse para um colecionismo igualmente negro? E isso levanta outra questão: será que já criamos um colecionismo negro? Temos grandes colecionadores negros no Brasil, colecionando artistas negros?”, indaga. “Vi que minha produção foi muito bem acolhida em Nova York e outros lugares nos EUA. E, para minha surpresa, eu a vi chegando a outras camadas sociais, a afro-americanos, colecionadores. Isso é genial. Quando vamos vislumbrar um afro-colecionismo brasileiro? Isso é quase uma intenção utópica de público alvo para mim.”

Representado desde 2016 por A Gentil Carioca, Arjan está em cartaz na filial paulistana da galeria até sábado (12/11), com obras inéditas, na individual Hemisfério 1. Na capital fluminense, o pintor está presente em três outras exposições: até 22 de janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR), ele é um dos artistas selecionados para a itinerância da 34ª Bienal de São Paulo, com o trabalho Complexo Atlântico (Oceano), que já havia apresentando na própria mostra paulistana, em 2021. Já no Centro Cultural da PGE-RJ, Arjan participa da coletiva Passado Presente: 200 Anos Depois; e no MAM Rio tem uma de suas obras expostas em Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência, em cartaz até 26 de fevereiro de 2023.

A partir de 19 de novembro, pela segunda vez, Arjan marcará presença em Inhotim, para onde levou, em maio, sua Instalação de Birutas (2021), no contexto do programa Acervo em Movimento. Desta vez, ele levará a Brumadinho um trabalho de 2019, a ser exibido na Galeria Lago, dentro da exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, fruto da parceria do instituto mineiro com o Ipeafro. Juntas, as duas instituições vêm pesquisando a obra do artista e ativista Abdias Nascimento.

Diferentemente de seus jovens pares, Arjan não viu nada acontecer “precocemente”. Nascido em Mesquita, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Argentino Mauro Martins Manoel fez o ensino básico na Federação Nacional das Associações de Benefícios (Fenaben) e na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa. Fosse em casa – criado pela mãe, após perder o pai com apenas 2 anos – ou naquelas instituições, ele não tinha qualquer contato com arte, tampouco se sentia inclinado para o ofício, como costumam relatar muitos de seus colegas.

Arjan começou a trabalhar ainda adolescente. Foi barman, office-boy, assistente de pedreiro. Na passagem para a vida adulta, conta o pintor, ele começou a frequentar, apenas como ouvinte, algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, que se tornou um “ponto de interesse, de escuta” para ele. Era a segunda metade dos anos 1980 e, em 1990, Arjan iniciou alguns cursos na EAV, agora pagos, com a venda de pães que fabricava em casa.

“Fui parar lá [na EAV] com certa naturalidade, por assim dizer. Quando ainda era viva, minha mãe me apresentou fotografias em que estávamos minha irmã, uma prima e eu, subindo a rampinha do Parque Lage. Eu teria ficado muito feliz se esta imagem pudesse ter sido a capa do livro [Arjan Martins, organizado por Paulo Miyada] publicado em 2021 pela Cobogó, até porque, ela detecta já ali uma convivência com este outro Rio de Janeiro, que é uma cidade multipartida”, conta.

Ainda a propósito do Rio, o pintor se lembra de um amigo, nascido em Marechal Hermes (bairro da Zona Norte carioca), que já vive há alguns anos em Nova York, mas que atravessou o Túnel Rebouças para a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, somente aos 17 anos. “Foi ali que ele, como eu no Parque Lage, viu outro Rio de Janeiro. Ele entendeu que havia outro país dentro de uma cidade”, pondera.

As primeiras experiências de Arjan como artista tiveram início em coletivos, “fazendo intervenções na arquitetura de alguns lugares, práticas bem livres com o desenho, como fazer sulcos numa parede”, conta. Ao mesmo, ele passou a visitar exposições com mais frequência.

“Ainda tinha um olhar distanciado, ao mesmo tempo fazia um contato mais pungente com a arte, com as provações que dali surgiam, as fricções. Surgia também aí uma necessidade de, como jovem artista, encontrar um repertório próprio e compartilhá-lo com os pares. Alguns dispositivos recorrentes em minha obra, como uma rosa dos ventos, a simulação dos planisférios e, a partir daí, um mergulho na busca por um Brasil além da história oficial.”

Entre os anos 1990 e o início da década seguinte, participou de coletivas diversas, entre o Rio de Janeiro, sobretudo, e São Paulo. Sua primeira individual, intitulada Desenhos, aconteceu em 2002, no Museu da República. Ainda no Parque Lage, afirma ter ouvido, “de algumas vozes”, que a pintura havia acabado. “Era algo muito duro para um jovem estudante, pesquisador, porque eu não entendia muito bem essa informação. Foi aí que eu quis apostar ainda mais na pintura, eu revalidei a experiência pictórica. É difícil? Ótimo, adoro o difícil. Essas definições são ditaduras provisórias”, diz.

Porém, de alguns professores da EAV – Fernando Cocchiarale, Elizabeth Jobim e Paulo Sérgio Duarte – afirma ter conseguido “uma honrosa atenção sobre sua pesquisa”. Eles incentivaram o artista a fazer uma individual no MAM Rio, ideia abraçada anos depois pelo então curador do museu carioca, Luiz Camillo Osorio. Nascia Américas, realizada em 2014, com curadoria de Duarte, que à época escreveu que o tema da exposição era “o da alteridade, o da solidariedade étnica”. Ali, já apareciam elementos que viriam a ser recorrentes em sua produção, como caravelas, rosas dos ventos e a cartografia, entre outros, alusões a questões caras ao artista, como migração e escravidão.

A propósito de Américas, as experiências que Arjan fizera antes com estruturas anatômicas o ajudaram a “migrar para a representação do corpo negro”. O pintor conta que encontrou, num sebo, fotos em preto e branco, “provavelmente da década de 40, de pessoas anônimas, senhoras numa beira de estrada, vendendo frutas numa bacia”. Ele afirma que aquelas pessoas “muito se assemelhavam a parentes antigos, ancestrais, traziam uma atmosfera boa ao lugar”. E lembra:

“Foi aí que tive um insight de colocar aquelas senhoras nas telas. Pensei que estava a fim de falar daquele corpo, descoberto num antiquário, que não traz a sua identidade, e tampouco a do fotógrafo. Eu aceitei a individualidade deles, o anonimato, e daí começou a surgir a ideia de uma figuração que não é figurada. Não vai para o hiper-realismo, vai tender sempre para uma abstração, a friccionar a experiência da figura. Uma experiência de pintura em que podemos falar de Francis Bacon, Willem de Kooning e outros autores cuja abordagem da figuração é a partir de outro lugar, evita certas convenções”, explica.

Mais recentemente, conta o pintor, ele buscou interpretações distintas sobre a construção do retrato. No ano passado, na mostra Descompasso Atlântico, n’A Gentil Carioca do Rio, ele diz que buscou “passar algo histórico”, nas representações de João Cândido (o Almirante Negro), e de Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês (1835), na Bahia. “Foram obras em que trouxe uma exaltação quase classicista, respeitosa, às duas figuras. Deixando claramente definidos quem eram os personagens”, diz.

Já na exposição Enciclopédia Negra, que aconteceu também em 2021, na Pinacoteca, em São Paulo, Arjan foi convidado para retratar Zumbi dos Palmares. “Mas aí eu abstraí sua figura. Nunca tive de perto um retrato preciso da figura dele. Portanto, isso me deixou um pouco confortável para poder abstrair. Claro que ela pode ser bem entendida ou criar um ruído visual na retina de algumas pessoas, mas estava sinceramente ali uma ideia de desfiguração, em que se reconhece ele, respeitando um ícone histórico.”

Quanto às cartografias, explica o pintor, vieram da necessidade de olhar para o Brasil e entender de que perspectiva ele é visto historicamente. “Eu, quando jovem artista, não via ninguém arriscando esse lugar. Logo vi que iriam transbordar dali muitos problemas, muitas questões. Isso foi naturalmente sendo incorporado em algumas obras, um olhar que não perde contexto histórico, mas, ao mesmo tempo, uma agenda ligada ao presente, que não é o lugar do coitadismo, é outra proposta. O Atlântico ainda está bastante desajustado e complexo, e é uma fonte preciosa de conteúdos para minha prática.”

Com obras presentes nos acervos do MAM Rio e da Pinacoteca, Arjan se prepara agora para participar de mais uma edição da feira Art Basel Miami, nos EUA, onde apresentará a obra Isto aqui é o Capricórnio. Ele afirma que é “interessante” ser um artista ser reconhecido, mas “também quitar seus boletos”. Sente-se um artista já consagrado? “São muitas variáveis que devem ser equacionadas. Meu perfil, acredito, foi o último: preto, hétero, essencialmente pintor. Foi uma múltipla vitória. E, apesar de ser um pintor hétero, meu trabalho está tratando de gênero também, todo o tempo. Embora minha pesquisa, ainda hoje, tente evitar qualquer resquício de sectarismo”, conclui.

Após veto, Ipiranga alega que aguarda ‘ação educativa’ para lançar HQ crítica ao Brasil atual

Trecho da HQ
Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução

A HQ Contra tempo – uma viagem de duzentos anos, uma distopia em forma de quadrinhos, projeto que questiona a visão cristalizada em torno da Independência do Brasil – cujo bicentenário é celebrado neste ano –, acabou tornando-se foco de debate esta semana, quando a Folha de S.Paulo revelou que a distribuição da revista no recém-inaugurado Museu Paulista havia sido desautorizada pelo conselho da instituição. A interdição vai na contramão da estratégia do museu de privilegiar a memória social, problematizando uma visão congelada e oficialista da história. E revela muito de nosso frágil momento político.

A instituição garante que não houve veto, mas que julgou melhor postergar uma eventual distribuição, vinculando-a a uma estratégia planejada de divulgação. “Pedimos apenas que a sua distribuição ocorresse com mediadores, dentro do contexto de uma ação educativa, para que fosse possível propor um debate sobre as questões apresentadas na obra”, afirma a comunicação do museu. O fato é que a linguagem direta do material assustou. Sobretudo no que se refere aos desenhos, que mostram a personagem principal inserida num cenário sombrio, que tem muito a ver com a realidade do Brasil atual, com referências a ruas renomeadas em homenagem a torturadores, propaganda de armas e à presença massiva de igrejas neopentecostais nas periferias das cidades.

A revista começou a ser idealizada ainda em 2020 pelo instituto Ciência na Rua, projeto de jornalismo sem fins lucrativos, voltado para o público jovem. O intuito era aproveitar a efeméride para oferecer uma narrativa diferente acerca do processo de independência, conta Mariluce Moura, diretora da associação, que tem por objetivo atingir os alunos de escola pública e conseguiu apoio do SBPC para imprimir a história em quadrinhos. Segundo ela, o museu parecia ser um lugar natural de distribuição. Com autoria coletiva de Ana Cardoso, Hyna Crimson, Igor Marques e João Paulo Pimenta, a revista trata de questões importantes, como a participação popular em diversos movimentos emancipatórios, e enfatiza uma visão da independência como um “processo histórico sem heróis”, impulsionada pela luta de brasileiros anônimos.

Excesso de zelo ou receio de retaliação em um período delicado como o atual? Difícil saber. De qualquer forma, a revista segue à disposição dos interessados em sua versão digital e lançamentos do material impresso também vêm sendo planejados Brasil afora, como o que ocorreu no último dia 21, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com palestra e distribuição do material.

Pivô tem chamada aberta para residências artísticas

Ateliê Aberto no Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 - Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Compreendendo a arte como um campo formado por múltiplas linguagens e saberes, o Pivô Pesquisa aposta num formato transdisciplinar de residência em sua edição 2023. Para isso, abre-se à participação de artistas, curadores, pesquisadores, educadores, críticos, escritores, gestores, editores e outros agentes da arte.

Serão oferecidos dois ciclos, para os quais será possível aplicar para uma estância de curta (três meses) ou longa duração (cinco meses), e dois ateliês do Pivô Pesquisa serão abertos para uma ocupação anual – que inclui a participação nas diversas atividades que integram o programa e a utilização do espaço individual de ateliê durante a realização da residência. Confira as datas e editais específicos:

Ciclo I
Residência de longa duração: 1 de março a 19 de julho de 2023
Residência de curta duração: 27 de março a 25 de junho de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Ciclo II
Residência de longa duração: 27 de julho a 13 de dezembro de 2023
Residência de curta duração: 14 de agosto a 12 de novembro de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Residência anual
1 de março a 13 de dezembro de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Estão previstas na programação atividades públicas e educativas, que compreendem aula inaugural com convidados, conversas e orientações individuais com interlocutores, debates, workshops e encontros mensais, além de acompanhamento curatorial permanente.

As residências dos ciclo I e II são gratuitas e serão oferecidas bolsas-auxílio aos participantes, no valor de R$ 1.300 mensais. Todas as pessoas selecionadas para residência terão acesso a um espaço individual de trabalho de 24m² ou 32m², à biblioteca e ao arquivo do Pivô e a atividades diversas propostas pelo programa – como acompanhamento curatorial, master class com convidado, conversas individuais com interlocutores convidados, práticas e oficinas em grupo, entre outras. A residência anual, por sua vez, tem uma mensalidade de R$ 1.500.

As inscrições ficam abertas até às 16 horas do dia 6 de novembro e são feitas diretamente no site do Pivô.

Trauma e reparação

Hélio Campos Mello, Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado, Buenos Aires, Argentina
Hélio Campos Mello, Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado, Buenos Aires, Argentina

A seguir, reproduzimos dois textos extraídos do livro Travessia do Silêncio, Testemunho e Reparação (2015), publicado pela Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, em São Paulo, sob a coordenação do Dr. Moisés Rodrigues da Silva Júnior e de Issa Fernando Sarraf Mercadante.

PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO DA COMISSÃO DE ANISTIA

Por Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia

Projeto Clínicas do Testemunho é uma nova etapa do programa de reparações da Comissão de Anistia; busca, por meio de Chamada Pública, selecionar projetos da sociedade civil para fomentar a implantação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados por violência de Estado a que se refere a Lei n. 10.559/2002. Os reflexos da violência do Estado praticada no período da repressão se perpetuam no psíquico das vítimas mesmo com o passar dos anos, e a falta de uma política pública no sentido de reparar essas violações reforçam a negação do Estado em reconhecer os erros cometidos por seus agentes, e contribuem para uma não reparação plena. O atendimento clínico às vítimas dos danos produzidos pela violência do Estado brasileiro é necessário para que se busque a reparação plena. Uma reparação apenas nos campos financeiro e moral deixa uma fissura no campo psicológico que precisa ser estudada e erradicada por meio de uma política pública de qualidade. O Estado tem a obrigação de prestar apoio psicológico aos cidadãos atingidos por graves violações dos direitos humanos.

É nesse contexto que surge o Projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia, que tem por objetivo a implementação de núcleos de apoio e atenção às vítimas e testemunhas, nos quais o atendido poderá trocar experiências com seus pares, por meio de escutas realizadas por equipe com conhecimento específico, através de metodologia apropriada para estas modalidades de traumas advindos da violência do Estado.

[…] Assim, a Comissão de Anistia amplia e dá efetividade às políticas públicas de reparação do Estado brasileiro, e permite que a sociedade conheça o passado e dele extraia lições para o futuro, reiterando a premissa de que apenas conhecendo o arbítrio estatal do passado podemos evitar sua repetição no futuro, fazendo da anistia política um caminho para a reflexão crítica, para o aprofundamento democrático e para o resgate da confiança pública dos cidadãos com relação às instituições estatais. O Projeto investe em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital público, garantindo igual possibilidade de acesso a todos, e evitando que uma única visão de mundo imponha-se como hegemônica ante as demais ou uma única metodologia se imponha no campo epistemológico, em respeito ao livre pensamento e o direito à verdade histórica, à memória e à reparação, disseminando valores imprescindíveis a um Estado plural e respeitador dos direitos humanos.

APRESENTAÇÃO
A TERCEIRA MARGEM DA REPARAÇÃO1

Equipe da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, com redação final de Rodrigo Blum

O ano de 2014 marcou os 50 anos do golpe no Brasil e 40 da sistematização da doutrina de segurança nacional, verdadeira “arquitetura de exceção” projetada pela ditadura civil-militar.

O estado de exceção no Brasil ‘destruiu livros e documentos, invadiu campi universitários, proibiu leituras de obras e de autores considerados antifascistas, socialistas, comunistas entre outros. Censurou textos, livros, letras de músicas, peças de teatro e criou a função do censor em redações de jornais e em veículos de comunicação; legitimou a delação, a espionagem entre vizinhos, a escuta telefônica e criou um clima de suspeição, incômodo e de vigilância permanente. Principalmente, instituiu a pena de morte por fuzilamento e o banimento do solo brasileiro. Não instituiu legalmente duas figuras trágicas que, se legalizadas, colocariam explicitamente o país na contramão das Convenções de Genebra: a autorização para a tortura e o desaparecimento forçado dos opositores capturados’2.

Meio século após o fatídico golpe militar de 1964, os efeitos traumáticos deste terrível período da nossa história começam a ser trazidos à público.

[…] Até os dias de hoje guardamos, através das gerações, as marcas dos efeitos devastadores decorrentes da violência traumática exercida pelo poder das ditaduras latino-americanas que, entre as décadas de 60 e 80 do século XX, amparadas pelo discurso da doutrina de segurança nacional, instituíram como política de atuação o terrorismo de estado. Um poder institucional inquestionável, implacável, com uma lógica de operar aleatória e sujeita a uma total arbitrariedade, sustentada por uma estrutura institucional que coordenou a implementação de uma política de desorientação 14 e terror.

Segundo Giorgio Agamben (2004) trata-se de uma forma de exercício de poder a partir da qual os conceitos de direito subjetivo e proteção jurídica deixaram de fazer sentido. O que se faz com este terror que assombra? É possível deixar de repetir o trauma? Como se aproximar das experiências de horror que, às vezes, só são conhecidas pelas marcas deixadas nos pais e que atravessam as gerações?

1Esse texto tem como objetivo ao mesmo tempo apresentar o trabalho realizado pela equipe da Clinicas do Testemunho – SP, assim como introduzir a temática trabalhada por diversos textos contidos neste livro. Neste sentido, encontraremos aqui uma composição entre a teoria e a clínica, bem como a produção conceitual dos diversos autores

2Maria Auxiliadora de A. C. Arantes. Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 129.

MEMÓRIA SEM LEMBRANÇA

Por Moisés Rodrigues da Silva Junior*

O que exatamente se configura como tortura? As técnicas ancestrais do grande inquisidor Torquemada? O pau-de-arara, os aparelhos de choques elétricos? Na imaginação de muitas pessoas essas são as primeiras cenas que ocorrem quando falamos em tortura.

Para a grande maioria são só essas as cenas e, por isso mesmo, acabam fechando os olhos ou os ouvidos a uma série de outras formas mais sutis mas igualmente cruéis de atormentar o outro. As simulações de execuções, ser testemunha da tortura de pessoas queridas, as ameaças de estupro, o manuseio de genitais e o isolamento apareceram vinculados a, pelo menos, tanta angústia quanto à causada por métodos físicos.

Não são somente os abusos físicos e visíveis que devem ser levados em conta. A manipulação psicológica, a humilhação, a privação sensorial e as posturas forçadas causam tanto dano, estresse e angústias como a tortura física.

No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, firma-se uma declaração contra a tortura e outros tratamentos desumanos: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca do ferro quente, e todas demais penas cruéis”. Ainda assim, em nossas constituições republicanas nada é apresentado sobre a prática da tortura (Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967), exceto uma menção na Constituição de 1967 quanto ao “respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário”.

[…] A tortura, por seu caráter brutal determinado pela ação humana deliberada, que tem por objetivo, anular pessoas, aterrorizá-las, e que por sua dimensão coletiva e política vale-se de características particulares humanas, não podendo ser considerada um “excesso” produzido por um sádico isolado. É, sim, uma instituição política do estado, produtora de subjetividade não apenas em suas vítimas diretas, mas também em seus familiares, descendentes e por irradiação no conjunto do tecido social.

A experiência extrema que a tortura produz sempre marca e transforma o destino do torturado que se apresenta como a testemunha encarnada de uma ferida que concerne a todos. Seu corpo ferido se oferece como símbolo, como bandeira em que se inscreve o que nele foi atingido e que Robert Antelme (2013) chama de “sentimento de pertença à espécie humana”.

Assim, o clima de terror generalizado e a institucionalização da tortura se traduzem, na subjetividade, como perda do apoio social necessário a seu funcionamento. Como descreve Eric Erikson: “(…) o eu continua existindo, ainda que tenha sofrido dano e mesmo mudanças permanentes; o tu continua existindo, ainda que distante, e pode ser difícil se relacionar com ele; mas o nós deixa de existir.” (p. 73)

Situações de grande violência e silenciamento social golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social) constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as pessoas causando um prejuízo na confiança no entorno social, na família, na comunidade, nas estruturas do governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz da constelação identificatória, base do sentimento de pertencimento à humanidade e da própria identidade, se abala de forma profunda alterando seu funcionamento.

Mesmo não tendo um quadro sintomatológico único, nem uma síndrome unívoca, as sequelas psicológicas da tortura são sérias e permanentes, com tendência ao agravamento com o passar dos anos, e mais. Segundo Léo Eitinger (1995), a lista de danos é extensa:

*a experiência traumática produz sequelas transgeracionais;

*o índice de psicoses é cinco vezes mais elevado do que nas populações que não as sofreram;

*a taxa de suicídio é de 16 a 23% mais elevada nas sociedades onde a tortura ocorreu a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;

*a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;

*a capacidade laboral fica muito diminuída, às vezes até impossibilitada;

*além do traumatismo inicial, devem ser levados em conta os efeitos agravantes produzidos pela retraumatização posterior;

*alguns sintomas de sequelas aparecem logo depois de longos períodos aparentemente assintomáticos (20, 30, 40 anos após o ato);

*as doenças físicas, as hospitalizações, as intervenções cirúrgicas etc. são mais graves e frequentes em sociedades que sofreram atos de tortura.

Pensando nessas condições que a tortura imprime na sociedade, direcionamos o foco de nosso trabalho às sequelas psicológicas dos envolvidos nos atos de tortura e numa possível abordagem clínica dessas situações.

CLÍNICA SEMPRE POLÍTICA

Segundo Gilles Deleuze (1988), as questões com as quais a psicanálise se defronta são inevitavelmente políticas. Tratam sempre do “quanto” e do “como” o desejo pode se produzir e se expressar diante das injunções de assujeitamento. Responder clinicamente aos traumas de natureza diversa aos traumas sexuais infantis desafia o clínico a elaborar conceitos úteis à situação, em que a experiência traumática está determinada por uma política de estado com um primeiro e explícito objetivo de fazer falar secundado por uma busca de silenciamento social.

Nicolas Abraham & Maria Torok (1995), comprometidos com a ideia de uma psicanálise com feições humanas e atenta à aceitação do humano, em todo seu sofrimento, diziam que, se alguém lhes pedisse para resumir em uma única palavra o conjunto da temática ferencziana, esta seria catástrofe e seus sinônimos: traumas, acidentes, afecções, pathos.

Para Sándor Ferenczi (1931), a reação imediata ao trauma é uma “agonia psíquica e física que acarreta uma dor tão incompreensível e insuportável” (p. 79) que o sujeito precisa distanciar-se de si mesmo, vivendo num estado de suspensão. As descrições de Ferenczi (1934) em relação à comoção psíquica fazem referência ao terror, à catástrofe, à morte. O desprazer causado pelo excesso não pode ser superado, estando o sujeito enfrentado com a máxima vulnerabilidade e impotência, restando apenas “(…) a autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo.” (p. 111)

TRAUMA E DESMENTIDO SOCIAL

Ferenczi (1931) postula a realidade do trauma. O fundamental aqui não é a noção de realidade, mas, principalmente, o que pode ser entendido como traumático. Uma catástrofe não é necessariamente traumática; ela pode se tornar traumática se, ao desastre, se somar esse outro elemento, capaz de minar a confiança básica em si, no outro, na vida. “O pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento (…) é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.” (p. 79)

Por desmentido entenda-se o não reconhecimento e a não validação perceptiva e afetiva da violência sofrida. Trata-se de um descrédito da percepção, do sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que vivenciou o trauma. Portanto, o que se desmente não é o acontecido, mas o sujeito. Este modelo não privilegia personagens, e sim relações. Relações de poder, de desvalorização, de desrespeito, enfim, relações políticas com o envolvimento de afetos como vulnerabilidade, humilhação e vergonha, cujas implicações são necessariamente políticas.

RECONHECIMENTO: CAMINHO DA CURA

Considerar o reconhecimento como o avesso do desmentido implica dizer que efeitos traumáticos podem ocorrer quando alguém não é reconhecido na sua condição. Não é possível uma posição neutra a este respeito: o desmentido, enquanto não-validação das percepções e dos afetos de um sujeito, pode ser entendido como um reconhecimento recusado. Nessa linha, podemos dizer que o reconhecimento é, em primeiro lugar, reconhecimento da vulnerabilidade de um sujeito.

Para Ferenczi (1932) o sujeito é vulnerável na relação com o outro, o que implica também o reconhecimento da própria vulnerabilidade. Inaugura-se, assim, a possibilidade de uma comunidade constituída horizontalmente, “comunidade de destino” a partir da precariedade de seus membros. Nas palavras de Ecléa Bosi (1995): “A comunidade de destino se refere ao fato de que um grupo de pessoas pode reunir-se, sem certezas prévias, para discutir ou construir seu próprio destino.” (p. 34)

[…] O pensamento de Ferenczi nos aponta para uma possibilidade de vínculo que, ao invés de constituir-se em torno da autoridade e da ilusão de garantias, sustenta-se sobre uma mesma “comunidade de destino”. O quanto se  quanto se acolhe um sujeito traumatizado, o quanto se admite a sua queixa de uma injustiça sofrida, o quanto se reconhece a sua necessidade de reparação: tudo isso configura uma necessidade que deve se estender ao campo da cultura, do direito, e da política. O grande ensinamento destes tempos em que vivemos tem sido que o laço social está ancorado no próprio fundamento do político enquanto arte de viver juntos.

Referências

ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta. 1995

ANTELME, R. A espécie humana. São Paulo: Record, 2013

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

EITINGER, L. Prisión en campo de concentración y traumatización psíquica. In: AZPIROZ, M. R. A. (Org.) Represión y olvido: efectos psicológicos y sociales de la violencia política dos décadas después. Montevideo: Roca Viva, 1995.

ERIKSON, E. Trauma y comunidade. In: ORTEGA, F. (Org.) Trauma, cultura e historia: reflexiones interdisciplinarias para el nuevo milenio. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2011.

FERENCZI, S.

(1922). Psicanálise e política social. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

(1931). Análises de crianças com adultos. Op. cit., v. IV

(1932). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990

*Moisés Rodrigues da Silva Júnior, médico, psicanalista, analista institucional. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientia e Professor do Curso de Psicanálise do mesmo instituto. Coordenador da Clínica do Testemunho do Projetos Terapêuticos (2013-2016).

Colaboradores da edição #60

ERNANI CHAVES é Professor Titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Estuda as relações entre filosofia, psicanálise e racismo. Para este número da arte!brasileiros, ele disserta sobre o conceito de necropolítica, de Achille Mbembe, trazendo-o para o contexto da realidade brasileira, marcada pela escravidão e pelo racismo.


RODRIGO NAVES é crítico, historiador da arte e professor, com doutoramento em estética pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Publicou ensaios e artigos em diversas revistas, jornais e catálogos brasileiros e do exterior. Nesta edição, escreve sobre a artista plástica Germana Monte-Mór, que apresenta exposição na Galeria Estação.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, escreve sobre as iniciativas governamentais no universo das artes no Espírito Santo e faz uma análise sobre as polêmicas da documenta quinze.



LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Recebeu os prêmios ABCA pela edição da revista arte!brasileiros (2012) e do Ministério da Cultura de Cuba (2009) pela atuação cultural naquele país. Nesta edição, assina matérias sobre as mostras Histórias Brasileiras e José Claudio: Uma Trajetória.


SIMONETTA PERSICHETTI é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes, doutora em Psicologia Social e pós-­doutora pela ECA-USP. É membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Neste número, faz uma análise sobre o questionável uso de imagens jornalísticas de grande impacto na mídia e em exposições.

Fotos: arquivo pessoal

Conexão e diálogo

Emmanuel Nassar exposto em LUGAR-COMUM no MAC USP
Emmanuel Nassar, sem título, 2007-2009, placa metálica pintada. Foto: Divulgação

Lugar-comum, exposição realizada pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP), é um exercício de conexão e diálogo que nasce de um projeto voltado para a desierarquização de obras e agentes, misturando categorias e agregando novas camadas poéticas ao longo do tempo. O processo se desdobrou por vários meses e foi organizado em três diferentes fases de trabalho. No Ato 1, 12 artistas de diferentes gerações e linguagens foram convidados a selecionar e mostrar criações de autoria própria e pertencentes ao acervo para exibir. No Ato 2, esses mesmos artistas assumiram o papel de curadores e pinçaram obras da coleção e de autorias diversas para serem exibidas junto com o primeiro conjunto. Já no Ato 3, que pode ser visitado até agosto de 2023 e reúne cerca de 150 obras, foram incorporadas ainda escolhas feitas por esse colegiado, mais a equipe curatorial do museu e seis outros artistas e curadores convidados. É possível identificar por meio do sistema de legendas o momento de incorporação de determinado trabalho, bem como qual artista foi responsável por sua inclusão, caso o visitante tenha interesse em adentrar mais a fundo nos bastidores do processo.

O resultado concreto não foi uma, mas três exposições sucessivas, que foram sendo adensadas a partir das contribuições. A cada ato – como são chamadas as fases pela montagem – novas adições foram trazidas à luz. Peças icônicas ganharam diferentes configurações e convergências pouco evidentes se estabeleceram, gestando um modelo mais horizontal e complexo para se pensar os ocultos nexos poéticos e formais da produção moderna e contemporânea.

São muitos os encontros improváveis decorrentes desse processo. Dentre eles estão a aproximação cromática e formal entre Lucio Fontana, Alexander Calder e Emmanuel Nassar e a ênfase na intensa relação entre arte e o mundo do trabalho presente nas gravuras de Renina Katz e na instalação de Laercio Redondo. Curiosamente, há inclusive duas obras que compartilham o mesmo título, Foi assim que me ensinaram, adotado tanto por Flávio Cerqueira como por Felipe Cama. A natureza-morta e, de forma mais ampla, uma relação afetiva com o mundo das coisas e dos objetos, permeia praticamente toda a exposição, ecoando nas obras de Eleonore Koch, Giorgio Morandi, Marcelo Zocchio, Nina Moares, Sidney Amaral, Yozo Yamaguchi, entre outros. Outro destaque desse processo subjetivo de valorização e ressignificação do acervo – como lugar não apenas de guarda e preservação, mas também de fonte para novas investigações – é o painel de desenhos de Di Cavalcanti selecionados por Carmela Gross dentre os cerca de cinco mil trabalhos em papel do artista modernista presentes nesse acervo.

Enfatizando o caráter processual e polifônico de Lugar-comum, Marta Bogéa, Helouise Costa e Ana Magalhães, que respondem pela curadoria do museu e pela coordenação geral da mostra, relembram como a exposição de certa forma resgata o legado de Walter Zanini. Vista como uma espécie de “mito de origem” do museu, a gestão do crítico à frente da instituição está explicitamente representada pelo resgate – proposto por Rosângela Rennó a partir da leitura de um texto de Helouise Costa –, da mostra Fotógrafos desconhecidos, organizada por ele em 1972. Edital público, teve 263 inscritos. Depois de uma série de desentendimentos entre os jurados, optaram por eliminar qualquer critério de exclusão e exibir todos os trabalhos apresentados. A atual versão reúne apenas as fotos que permaneceram no acervo do MAC, assinadas por autores como Moema Cavalcanti e Paulo Cleto.

A ênfase na liberdade e na experimentação acabou também por movimentar a instituição internamente, envolvendo todas as instâncias do museu, acionando e mobilizando setores como documentação, educativo e conservação das obras, que se ocupam de bastidores e detalhes muitas vezes não tão visíveis. Este último, por exemplo, acabou aprovando, depois de análises técnicas bastante cuidadosas, a ideia de retirar provisoriamente a moldura de telas icônicas como as de Morandi, Volpi e Matisse, num movimento singelo, porém transformador.

O obsceno da imagem

Nos últimos meses, imagens jornalísticas de grande impacto foram utilizadas pelo seu alcance midiático. Foi o caso, na recente Bienal de Berlim, da polêmica exposição do artista francês Jean-Jacques Lebel, Poison soluble. A obra, criada em 2013, é um labirinto de imagens recortadas e ampliadas das torturas sofridas por prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib. Por conta disso, 15 artistas iraquianos se retiraram e removeram seus trabalhos da Bienal, acusando os curadores do uso indevido das imagens.

Só para lembrarmos do fato: em 2004, em meio à Guerra do Iraque, o mundo se espantou quando as primeiras páginas dos jornais estamparam prisioneiros iraquianos sendo torturados por soldados americanos. O complexo penitenciário de Abu Ghraib ficava a 32km de Bagdá e era administrado pelos norte-americanos. O que mais chocou naquele momento, além do fato bárbaro em si, é que os soldados haviam registrados aquelas cenas com uma estética que muito se aproximava de álbuns de férias: eles, sorridentes, diante dos prisioneiros.

Na contemporaneidade, em que os museus cada vez mais trabalham histórias do passado, evitando um apagamento histórico, a espetacularização nem sempre é sinal de sucesso, mas muitas vezes causa de naturalização de um evento, como o das torturas, ou até mesmo de alienação.

No mesmo mês, julho deste ano, outra polêmica envolvendo imagens: a revista Vogue contratou a reconhecida fotógrafa Annie Leibovitz para retratar o casal presidencial da Ucrânia, que posou em frente aos escombros de guerra e dentro do palácio oficial em que residem. Imediatamente, as redes sociais entraram em polvorosa criticando a atitude de todos: da revista, da fotógrafa e do casal. O problema da matéria não são as fotos em si, mas sim o contexto, a publicação para a qual foram realizadas, uma revista de moda. Talvez, se elas tivessem sido feitas para a capa de uma revista de informação, o debate não teria sido tão acalorado.

No Instagram também surgiram registros realizados por um professor, um pedido de seus alunos ucranianos, para que fossem fotografados em meio aos escombros de sua escola no dia da sua formatura. A justificativa foi a de se fazer um ensaio-protesto contra a guerra, numa estética de redes sociais.

Não é de hoje que filósofos e estudiosos da comunicação falam sobre a cada vez mais crescente onda do entretenimento midiático. Aliás, este processo se potencializa na virada do século 20 para o século 21, quando o ataque às Torres Gêmeas nos foi apresentado como um evento cinematográfico.

Cada vez mais as imagens que diariamente desfilam diante de nossos olhos nas telas do computador, ou de um smartphone, são mais espetaculares, sensacionalistas ou escandalosas. O filósofo francês Gilles Lipovetsky e o professor da faculdade de Grenoble, Jean Serroy, em seu livro A estetização do mundo, de 2015, já avisavam que vivemos numa hipercultura midiática-mercantil em que “a arte contemporânea se pretende ‘experencial’ proporcionando sensações fortes, um choque visual pelo espetáculo do desmedido, do excessivo.” Uma estética midiática, que nem sempre pretende ou busca a reflexão, mas o susto.

A colocação da imagem como um megaevento que nos desconcerta, não fica presa a imagens jornalísticas. Devemos pensar hoje também na “moda” de exposições imersivas, que por si só são bastante interessantes, mas nem tudo deveria ser imersivo. São mostras muitas vezes criadas com o único intuito da distração, do divertimento. Não que o lúdico não seja importante, mas a forma que nos são apresentadas parecem mais cenários prontos para selfies, ou possibilidades de criar engajamento nas redes sociais.

Nem toda obra se presta a esta experiência. Algumas, feitas no início do século 20, foram criadas para um outro tipo de diálogo, de rupturas estéticas e históricas, de questionamento dos estados vigente da arte e não como cenários fake de um parque de diversões.

A polêmica e desafiadora crítica de arte e de cultura Camille Paglia, em seu livro Imagens cintilantes, de 2015, retoma uma constatação já por muitos colocada: “A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os lados.” Ela se pergunta como podemos viver diante desta sensação de vertigem, já que perdemos nossa capacidade da contemplação, que é quase sinônimo de calma, sensação que parece impossível se vivemos na contemporaneidade: “Em meio a tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade, da direção da vida”, diz Camille, em outro trecho.

Diante desta espetacularização das imagens contemporâneas, precisamos compreender o papel da arte ou, como afirma a própria Camille Paglia, “precisamos reaprender a ver”.

Carta da Editora: pela liberdade

Escrevo este editorial num momento crítico da história recente do Brasil.
Nos dias 22 e 23 de setembro, apresentamos, em parceria com o Sesc, o Seminário Cultura, Democracia e Reparação, na unidade da Vila Mariana, em São Paulo.

Esta edição traz algumas das questões centrais colocadas pelos palestrantes (o Seminário, gravado na sua íntegra, poderá ser assistido gratuitamente nos canais digitais de arte!brasileiros e do Sesc) e pelos colaboradores. Quando for lançada a revista, ainda não saberemos o resultado das eleições presidenciais em segundo turno no país.

Quem nos conhece, sabe que entendemos a cultura e a arte como algo totalmente relacionado à natureza, não em contraponto a ela. A arte como reflexo de nosso tempo, quando apenas a contemplação não é mais suficiente. Agora, temos a obrigação de pensar a arte e a cultura imbricadas na defesa de um ideal democrático de convivência e refletir como podemos contribuir, a partir do nosso pequeno espaço, para a derrocada do obscurantismo e do atraso. É impossível declamar sobre estética e ética, imaginando que podemos nos omitir de maneira alienada.

A arte!brasileiros apoia publicamente a votação para a frente ampla democrática formada por diferentes coligações e movimentos da força popular, contra a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro, cujo governo nos assolou durante estes últimos quatro anos com propostas que bem conhecemos e que, com o maior cinismo, passa por baixo do pano leis que retiram investimentos da ciência, da educação, da cultura, da saúde e do meio ambiente, colocando-os a serviço da reeleição.

Afinal, que democracia estamos defendendo?

Não bastassem séculos de desigualdade social, de negação do racismo estrutural, de violência indiscriminada contra povos originários inteiros, dos anos 1980 para cá o neoliberalismo deu lugar a um novo tipo de concentração de poder, não apenas econômico, mas também de ordem cultural. Ofertas crescentes de soluções para garantir privilégios pipocaram. Bairros fechados em condomínios, licenças para usos privativos em locais com perfil comunitário, rejeição ao outro e ataques a quem pensa diferente, entre alguns exemplos, acabaram por criar um ambiente hostil ao espaço público, que acaba sendo visto não como a base para uma sociedade civilizada, mas sim a exceção.

Nestes anos estimulou-se a vocação para o individualismo: na forma de morar, de consumir, de conviver, de criar. A construção de grupos sociais cada vez mais fechados, que se retroalimentam pelo funcionamento e controle de algoritmos que determinam quem é quem, quem vale o quê.

Nessa toada, a arte também foi capturada. Obras viraram mercadorias e, numa verdadeira dança de cadeiras, vários dos profissionais que hoje vemos dirigindo instituições culturais são provenientes do mercado financeiro ou do setor empresarial, com a desculpa ou a necessidade de garantir que seus privilégios continuem existindo. Dessa forma, um circuito perverso coloca nas mãos da compra e da venda algo que deveria estar a serviço de todos. Nos últimos quatro anos, em que o Estado cortou investimentos, as instituições tiveram que optar por parar com parte das iniciativas participativas, cortar equipes curatoriais, programas educativos, conferências e performances.

Chegamos a um novo impasse, cíclico.

É necessário criar mecanismos de incentivo à pluralidade na cultura, precisamos de conselhos profissionais isentos das necessidades do mercado. Os acadêmicos precisam aprender gestão, para dirigir seus esforços de modo que as instituições consigam um equilíbrio entre os patrocínios públicos e privados. E os profissionais de mercado precisam captar verbas para que isso aconteça, com regras claras.

Cito aqui o filósofo Jacques Rancière em Òdio à Democracia, escrito em 2005:
As leis e as instituições da democracia formal são as aparências por trás das quais e os instrumentos com os quais se exerce o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência sensível”.
“O novo ódio à democracia pode ser resumido então em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática”.

Um dos nossos convidados para o Seminário, o filósofo e escritor Hal Foster, que não pôde viajar e estar conosco, desenvolveu, no seu livro O que vem depois da farsa, a ideia de que esse ato, esse ardil, quase cômico e burlesco no qual estamos imersos, poderia ser interpretado como um interlúdio, um interregno, que poderia nos dar a esperança de que outro tempo chegará. Nas palavras dele, “nada está garantido, tudo é luta.”

Temos a oportunidade, em um momento de convulsão política como o que vivemos, de encontrar brechas na ordem social pelas quais seja possível resistir e reelaborar as regras com que estamos convivendo. Temos a possibilidade de acreditar que cuidar do outro é uma atitude criativa, assim como construir um projeto curatorial coletivo ou incentivar obras coletivas como as apresentadas na documenta quinze, em Kassel. Lá, por meio do conceito de lumbung, grupos coletivos de trabalho carregaram a intenção de denunciar o fascismo, defendendo a natureza, as diferenças e a amizade. Essa é a tarefa que, mais do que nunca, nos cabe agora.

Arte e cultura estão imbricadas em uma democracia

Vista do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação
Vista do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação. Foto: Anderson Rodrigues / Cortesia Sesc Vila Mariana

Em sua sétima edição, o Seminário Internacional realizado pela arte!brasileiros marcou mais um capítulo de nossa luta pela cultura e educação. Com o título Cultura, Democracia e Reparação, temas urgentes nos cenários sociopolíticos brasileiro e mundial, o encontro de 2022 teve sua primeira edição presencial após dois anos, devido às restrições sanitárias da pandemia. Com a parceria do Sesc SP, o seminário contou, entre os dias 22 e 23 de setembro, na unidade da Vila Mariana, com um público cativo, recorrente em nossos eventos, formado, em sua maioria, por estudantes e acadêmicos, além de representantes das mais importantes instituições culturais de São Paulo, como Jochen Volz (diretor-geral da Pinacoteca), Cauê Alves (curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo), entre outros.

Em sua fala de abertura, Danilo Santos de Miranda – filósofo, sociólogo e Diretor do Departamento Regional do Sesc SP – salientou as parcerias feitas com as instituições no campo da cultura e do interesse público, que possibilitam iniciativas e eventos como o VII Seminário Internacional. Em seguida, Patricia Rousseaux, diretora da revista e plataforma arte!brasileiros, ressaltou que “não estamos mais em condições de exercer apenas a contemplação: arte e cultura estão imbricadas em uma democracia.”
O tema da mesa do primeiro dia foi O Abismo e a Costura, uma referência ao poço sem fundo em que o Brasil parece ter caído nos últimos (quase) dez anos, desde quando ocorreram as chamadas Jornadas de Junho, em 2013. A vilanização da política, a tomada do poder por parte da extrema direita e o recrudescimento dos ataques ao meio ambiente e a minorias – negros, povos originários, a comunidade LGBTQ+ – marcaram os últimos quatro anos, tudo agravado pela pandemia.

Ao mesmo tempo, partiram, justamente desses alvos, algumas iniciativas que têm por princípio a solidariedade, a empatia e o respeito, que vêm costurando formas de resistência, criando novas práticas culturais, novas utopias para o presente. Para discutir essas cisões e as potenciais suturas, foram convidados o professor e psicanalista Christian Dunker e a pesquisadora e curadora Sandra Benites, membro da comissão artística do Museu das Culturas Indígenas. A introdução da mesa foi feita por Paula Macedo Weiss, doutora em Direito pela Universidade de Tübingen e Presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, na Alemanha. Weiss leu trechos de seu livro Democracia em Movimento.

No segundo dia, a mesa teve como tema A Farsa e a Comunidade. Seu objetivo foi repensar a primazia do indivíduo sobre a coletividade, um movimento exacerbado pelo neoliberalismo, e apontar que ações de resistência vêm sendo elaboradas, dentro e fora do Brasil, como contraponto. Para isso, reuniu importantes figuras de hoje a fim de aprofundar a reflexão. Para falar de suas experiências, estiveram presentes o artista, curador e membro da comissão de arte do MAM SP, Claudinei Roberto da Silva; o artista indonésio Farid Rakun, membro do coletivo ruangrupa, responsável pela concepção e execução da documenta quinze, e a artista e educadora Graziela Kunsch, brasileira convidada a participar da mostra ocorrida até setembro em Kassel, na Alemanha. A abertura ficou a cargo da professora Ligia Fonseca Ferreira, que apresentou um case sobre a representação e a visualidade do corpo negro na História da Arte, a partir do livro Uma Africana no Louvre, de Anne Lafont, que Ferreira acabou de traduzir para o português.

Os encontros tiveram tradução simultânea e foram acessíveis em Libras. O Seminário será disponibilizado online nas plataformas digitais da arte!brasileiros e do Sesc SP. Leia, nas próximas páginas, a cobertura do VII Seminário Internacional.

Democracia em movimento

Nascida em 1969, no auge da ditadura civil-militar, filha de um político da oposição, Paula Macedo Weiss pôde vivenciar muito de perto o processo de redemocratização e de retomada da democracia plena no Brasil com o advento da Constituição de 1988. Hoje, defende: “A democracia não é apenas um regime político, mas sim uma forma de vida.”

Foi com essa fala que Weiss deu o tom à abertura do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, promovido pela arte!brasileiros e pelo Sesc São Paulo nos dias 22 e 23 de setembro. Doutora em direito pela Universidade de Tübingen, presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt e membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo, Weiss vem se engajando em projetos em prol da democracia por diferentes formatos, por meio da literatura, de projetos culturais e, mais recentemente, como cofundadora do Netzwerk Paulskirche, um grupo da sociedade civil alemã que visa incentivar a participação política e criar práticas e experiências democráticas positivas no cotidiano.

Convidada para o evento, fez a leitura de um ensaio de seu livro Democracia em Movimento, lançado pela Folhas de Relva Edições em 2022. A publicação reúne textos curtos, que misturam crônicas literárias e ensaios jornalísticos, nos quais Weiss parte de suas experiências pessoais para comentar e refletir sobre aspectos da vida contemporânea. O ensaio As Regras do Jogo não é diferente: a escritora se debruça sobre sua própria experiência de compreender o Estado Democrático de Direito durante sua passagem pela faculdade, poucos anos após o fim da ditadura, e destaca: “Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados”. Transcrevemos aqui o ensaio na íntegra:

Sabe aquela pessoa que cruza seu caminho e se torna determinante para você ver o mundo de outra maneira? Essa experiência tem um poder exponencial se você ainda está numa fase da vida na qual, como Paulo Leminski precisamente descreve, “o sabor da carne / ainda não foi estragado / pela salmoura do dia a dia”.

O meu marco divisor foi um professor de Teoria Geral do Direito. Ele acabava de voltar de um pós-doutorado em Direito Constitucional da Alemanha. Idealista, tinha a ambição de formar uma nova geração de juristas holísticos, interessados no bem comum, num momento significativo na sociedade brasileira: o da retomada da democracia através de nossa nova Constituição cidadã, detentora de todos os direitos fundamentais e necessários para a construção de um Estado e uma sociedade justos e igualitários; uma frátria, na voz de Caetano Veloso. Esse professor conseguiu flamejar a imaginação do nosso grupo e nos cativar para a beleza e a complexidade da estrutura e do funcionamento do Estado ocidental moderno: o Estado Democrático de Direito.

Ao destrinchar o conceito de Estado Democrático de Direito, meu caro professor entregava-nos esse bem maior, a recém-adquirida democracia, como um neonato, nas nossas mãos. A Terra Brasilis encontrava-se ainda na sua mais tenra infância democrática; essa práxis política era ainda inexperiente e passível de traumas e desequilíbrios, porém robusta constitucionalmente, e vinha desde o seu nascimento mostrando sua capacidade de desenvolvimento e aprendizado. Entender esse recém-nascido com toda sua complexidade era conditio sino qua non para a superação dos traumas sociais e falácias impostos por 21 anos de ditadura e a oportunidade real e legal de um futuro digno, plural e promissor. A nós cidadãos cabiam a obrigação e o direito de nos imiscuir nessa árdua tarefa de estancar as inúmeras feridas abertas que ainda latejavam na nossa sociedade brasileira. Com a retomada da democracia resgatamos também a nossa cidadania plena e com ela a premissa de que todos nós participávamos do mesmo jogo democrático.

Havia aí, porém, alguns senões. Considerando que somos todos iguais perante a lei, temos nós, cidadãos, de fato os mesmos direitos, se declinarmos estes em igualdade de chances e participação? Existem outros mecanismos que influenciam as regras desse jogo democrático? José Saramago considerava que a “verdadeira democracia” não existe, porque os governos responderiam aos interesses do poder econômico. O filósofo Ortega y Gasset, apesar de conservador, tinha uma visão dinâmica do indivíduo. A sua célebre frase “o homem é o homem e sua circunstância” nos revela que não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo, sem levar em conta simultaneamente tudo que o circunda, a começar pelo próprio corpo e o contexto histórico, político e social em que se insere. Aquele que nunca teve a oportunidade de participar ou aquele que desistiu ou foi excluído do jogo por questões adversas à sua vontade terão as mesmas chances e cartas na mão que aquele que foi sempre privilegiado por sua classe social, sua etnia, seu fenótipo, sua crença? Diante dessas contingências, será que jogamos todos o mesmo jogo com as mesmas regras?

"Democracia em Movimento", de Paula Macedo Weiss, publicado pela Folhas de Relva Edições em 2022. Foto: Cortesia Folhas de Relva Edições
“Democracia em Movimento”, de Paula Macedo Weiss, publicado pela Folhas de Relva Edições em 2022. Foto: Cortesia Folhas de Relva Edições

Lembrei-me do cultuado e complexo filme de Jean Renoir, A Regra do Jogo. O filme é um jogo coletivo, com várias narrativas e claras regras. Percebe-se que a obra se relaciona com a ideia de Corte/Estado, traz uma série de interações humanas, além de pincelar indagações sobre a democracia e o jogo político no prelúdio da Segunda Guerra Mundial. Assim como o ser humano, a sociedade não é algo estático e insuscetível de mudanças. Diante dessas transformações estruturais do mundo pós-moderno, a arte é um importante meio de se entender casos multifacetados, nos quais é preciso fazer uma análise mais ampla e crítica para que haja soluções mais justas e democráticas no plano político. 

A política tem que modelar e balancear permanentemente distúrbios de afetividade – fruto da disputa de concepções de mundo e de existência social – nas sociedades contemporâneas. O reconhecimento virou moeda de câmbio e a rejeição, um tema de extrema relevância nesse jogo político. A melhora de um determinado grupo não pode significar a desvalorização material e cultural do próximo. As perdas econômicas, o medo de declínio, a sensação de não ter lugar e nenhum valor na sociedade são pontos nevrálgicos nesse tabuleiro. Temas como esperança, confiança, medo, liberdade, igualdade, justiça, segurança determinam a partida.

Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados nos seus anseios e impotências, pois isso cria um dilema político estrutural. O característico e promissor do jogo político é que este nunca termina e as regras podem, dentro do princípio da legalidade, ser sempre adaptadas aos novos desenvolvimentos sociais, às diversas narrativas que estão sendo construídas ao mesmo tempo agora. E se o jogo não fosse competitivo, mas cumulativo? Venceríamos se compreendêssemos que somos um, que somos todos. Como diria Vicente Mateus, o lendário presidente do Corinthians, “o jogo só acaba quando termina”.

Em uma democracia – em movimento – nem sempre ganhamos, mas quando perdemos, temos na próxima eleição uma nova possibilidade de lutar por nossas convicções e vencer. Esse é o maravilhoso e sóbrio jogo da democracia. Essa é a minha deixa: temos a chance real de determinarmos uma nova narrativa para o nosso país através do exercício do direito de sufrágio. Portanto, cidadãos brasileiros, avante!

E, para o caminho, uma frase do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, odiado pela extrema-direita no poder: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho – os homens se libertam em comunhão”.

O abismo e a costura

A fala de Paulo Freire reverberou na apresentação de Sandra Benites. A curadora, educadora e doutoranda em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ trouxe à mesa O Abismo e a Costura mais do que sua experiência individual. Como mulher indígena guarani nhandewa, partilhou sua caminhada coletiva: “O que carrego com maior força é a minha coletividade, onde está a minha sabedoria ancestral. Se não escutasse essas memórias dos nossos antepassados, não estaria aqui hoje falando sobre a minha resistência”.

Trazer essas memórias passa também por um histórico de silenciamento iniciado na colonização brasileira e ainda hoje presente. Segundo o IBGE, existem atualmente no Brasil 305 etnias indígenas e cerca de 274 idiomas. Como coloca Benites, porém, esse número já foi maior. “Muitos perderam as suas palavras faladas, a língua materna. Hoje algumas estão sendo retomadas depois de vários processos que proibiram pessoas indígenas de falarem as suas próprias línguas, porque elas não eram tão importantes para aquele sistema que foi imposto.” A invisibilização vai além do caráter linguístico: “Hoje, nós [indígenas] somos chamados de invasores, e isso é muito revoltante. Meus parentes foram massacrados, literalmente, porque o governo atual fala que nós somos invasores. Parentes foram assassinados, lideranças foram assassinadas, crianças foram assassinadas. Isso não foi divulgado”, declara Benites.

A curadora se refere aos crimes ocorridos com as comunidades guaranis, mas a isso podemos somar o fato de que os assassinatos de pessoas indígenas aumentaram mais de 60% no primeiro ano da pandemia, segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Entre os dias 3 e 13 de setembro de 2022, logo antes do Seminário Internacional, ocorreram seis assassinatos entre os povos guajajara, guarani-kaiowá e pataxó. Em abril de 2022, o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari, denunciou que a Terra Indígena Aracaçá, em Roraima, foi totalmente incendiada, após a acusação de um estupro e assassinato de uma menina indígena de 12 anos por garimpeiros. Em 2021, 32 líderes indígenas e quatro servidores públicos que trabalham com as comunidades receberam ameaças de morte, segundo um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

“Aí eu pergunto: onde está a democracia? Onde está a reparação?”, indaga Benites. Para a curadora, a fim de se discutir a temática central do seminário — cultura, democracia e reparação — é preciso compreender como lidamos com a “fronteira” que existe entre o eu e o outro. “Como a gente vai discutir democracia se não existe escuta?.” Em contraponto a esse cenário, ela traz a perspectiva guarani: “A política se desenvolve a partir do encontro, da escuta e do entendimento do outro. Nós temos as nossas desavenças, dificuldades e desafios, mas não tentamos apagar o outro por conta dessa diferença”.

Benites costura, então, essa falta de escuta ao cenário artístico, a partir de sua experiência pessoal. No dia 17 de maio, após o Masp decretar a suspensão de um dos núcleos da coletiva Histórias Brasileiras, por conta da declarada impossibilidade de exibir uma série de fotos sobre o Movimento Sem Terra (MST), Benites pediu demissão do museu, onde até então era curadora adjunta. O núcleo, intitulado Retomadas, foi curado por ela e Clarissa Diniz, e após uma série de manifestações de ambas e de outras figuras do mundo artístico, a decisão do Masp foi revogada e o núcleo, reintegrado (saiba mais sobre as discussões em torno da mostra e da postura do Masp).

“A partir do momento em que a gente ocupa um espaço com diferentes corpos, a gente soma, a gente amplia. Mas essas ampliações requerem muito escuta”, afirma Benites. “Quando decidi sair, acho que o meu silenciamento foi também minha resistência. Esse lugar onde não posso somar, não posso ficar.” Com esse exemplo, a curadora mergulha nas ideias de democracia e reparação, o que nos mostra que apenas o convite aos espaços e cargos, sem uma real escuta e abertura para a cultura do outro, não adianta, não leva a uma legítima ocupação por corpos diferentes, mas a uma tentativa de moldá-los ao sistema. “Muitas das vezes a gente não cabe nesses espaços.”

O psicanalista, autor e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, deu seguimento a essa fala de Benites quando expressou que a democracia pode se estender em razão de incluir aqueles que estavam excluídos por ela em um determinado momento, mas também pode se contrair. Para ele, são nesses momentos em que percebemos que a democracia não é de graça, “episódios de ruptura que, de certa forma, representam todo o processo pela negação do processo” e nos quais surge a imagem do abismo. “A alegoria do abismo, ou do precipício, surge espontaneamente quando pensamos na história da democracia no Brasil, como um índice da desigualdade, da diferença, da intransponibilidade entre raças, classes, gêneros, fruto de uma colonização marcada por uma relação em abismo, em que a passagem de um lado para o outro se encontra interditada”, propõe Dunker.

Mas, afinal, do que falamos quando falamos de democracia? Em artigo publicado na edição 58 da arte!brasileiros, o psicanalista expande a questão: “Alguns dirão que a ideia de democracia originada na antiguidade realizou-se em instituições da modernidade. Outros argumentarão que esta é uma realização incompleta, pois a democracia permanece como ideal, ou seja, a ideia de uma comunidade por vir, capaz de ser-para-todos e a todos incluir. Outros ainda consideram que a aplicação da ideia de democracia a pessoas e ideias é uma falsificação do termo. Democracia nunca existiu, logo nunca existirá. É só um nome que damos a certos regimes políticos não autocráticos. O Brasil dos anos 2013-2020 tem sido descrito como um país em democracia regressiva, ou seja, marcado pela precarização do funcionamento institucional, retração do uso livre da palavra e violação de direitos humanos”. Nesse sentido, Dunker agrega à experiência da democracia uma constante tarefa de “recordar, repetir e elaborar”, mas não só, para ele é preciso ainda reparar.

“Então se a gente quer pensar um Brasil capaz de se reparar e reinventar, num sentido não só de perdoar, transpor, mas de compartilhar algo, é preciso olhar para o abismo e enxergar nele mais do que mera negatividade, mais do que mero hiato intransponível, mas enxergar nesse abismo um comum por vir, que pode nos aproximar”, declara o psicanalista. Para ele, “há artistas, como Anselm Kiefer, Alfredo Jaar, Nazareth Pacheco e Itamar Vieira Júnior que se dedicaram especificamente ao trabalho de luto e reparação, assim como há testemunhas éticas de desastres inomináveis, como Sojourner Truth, Primo Levi ou a compilação de sonhos feita por Charlotte Bernhardt, mas sua mensagem torna-se realmente um compromisso com o futuro quando nos implica uma espécie de trato entre viventes, morrentes e seres vindouros”.

A farsa e a comunidade

Foi explorando um desses esforços de reparação e compromisso com o futuro que Ligia Fonseca Ferreira, professora associada do Departamento de Letras da UNIFESP e doutora pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, iniciou as reflexões do segundo e último dia do VII Seminário Internacional arte!brasileiros, mais especificamente a exposição O Modelo Negro de Géricault a Matisse, que aconteceu no Museu d’Orsay em 2019. A mostra contou com obras feitas desde a abolição da escravatura na França (1794) até os dias modernos e, de acordo com o Museu d’Orsay, foi concebida para “fornecer uma perspectiva de longo prazo” e “centra-se sobretudo na questão dos modelos e no diálogo entre o artista que pinta, esculpe, grava ou fotografa e o modelo que posa. Explora notavelmente o modo como evoluiu a representação de sujeitos negros em grandes obras de Théodore Géricault, Charles Cordier, Jean-Baptiste Carpeaux, Edouard Manet, Paul Cézanne e Henri Matisse, bem como as fotografias de Nadar e Carjat”.

Com curadoria de Cécile Debray, Stéphane Guégan, Denise Murrell e Isolde Pludermacher, a exposição, “além da sua beleza proposta, pôs em destaque o valor e o papel determinante das pesquisas acerca da representação e da representatividade de negras e negros na arte ocidental”, afirma Ferreira. Entre tais pesquisas está a própria tese de doutorado de Denise Murrell, intitulada Seeing Laure: Race and Modernity From Manet’s Olympia to Matisse, Bearden and Beyond e defendida em 2013 na Universidade de Columbia, nos EUA.

Em um caso objetivo de reparação, a professora ressalta que alguns dos modelos foram identificados por meio das pesquisas e “muitos deles passaram de simples figurantes a indivíduos. Conseguiu-se, inclusive, resgatar a biografia de alguns deles. [Com isso] o Museu d’Orsay finalmente dá o nome às esquecidas e aos esquecidos pela História da Arte, e abre uma reflexão sobre conflitos sempre atuais de representação”. Não apenas isso, mas algumas obras também tiveram seus títulos revisitados para eliminar expressões pejorativas e racistas. A exemplo disso, Ferreira assinala o caso de Retrato de uma Mulher Negra (1800), de Marie-Guillemine Benoist, reformulado para Retrato de Madeleine. Ela também traz ao debate o trabalho de Anne Lafont, professora da École des hautes études en sciences sociales, em Paris, cujo livro Uma Africana no Louvre foi traduzido por Ferreira e será lançado pela editora Bazar do Tempo ainda este ano. Por fim, transportando as questões para o cenário nacional, a professora lembrou da obra Onde Estão os Negros?, criada pela Frente 3 de Fevereiro e exibida como uma intervenção na fachada do Masp na ocasião da mostra Histórias Afro-Atlânticas.

O professor, curador e artista visual Claudinei Roberto da Silva parece ecoar tal questionamento. Atual membro da comissão de arte do MAM São Paulo e cocurador do 37o Panorama da Arte Brasileira promovido pela instituição, o participante da mesa escreveu em artigo para a edição 53 de arte!brasileiros: “Num Brasil profundamente comprometido com seu passado escravagista e, portanto, com o racismo estrutural e as práticas que ele entroniza, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira?”. No mesmo texto, ele sugere que falemos “da necessidade de construção de um novo desenho de história, inclusive de arte, que na sua constituição se alicerce no antirracismo e imponha um debate sobre a branquitude”.

No VII Seminário Internacional, Silva reafirmou: “A ideia que nós temos de democracia não pode prescindir de cultura e não pode prescindir de reparação. Em especial em um país que como o nosso tem uma história de violência e de exclusão”, pontuou Silva. Nesse sentido, o curador extrapola a ideia discursiva para destacar a importância de ações práticas e de um direcionamento das políticas de nosso país: “A defesa da nossa incipiente democracia passa obrigatoriamente pela defesa das instituições de cultura, ensino e arte”. Na sequência, retomou Mário de Andrade: “A cultura é mais importante que o pão, porque sem a cultura sequer fazemos o pão”.

Na opinião do artista, porém, isso envolveria uma reformulação do próprio ambiente cultural e artístico. “É preciso criar um léxico qualquer e uma ética também para lidar com essa realidade incontornável, dessa emergência de uma produção intelectual e simbólica periférica”. Faz a proposta ao lembrar da constante criminalização dos movimentos populares: “É preciso admitir que o nosso capitalismo é um capitalismo de senzala, que ainda não qualifica os seus consumidores, que não quer que as populações periféricas frequentem os shoppings, é um capitalismo que interdita o rolezinho, que criminaliza os movimentos populares.”

Para o curador, no entanto, longe de favorecer a reparação, o momento sociopolítico atual traz preocupação, a exemplo das frequentes trocas no Ministério da Educação nos últimos quatro anos: “Vivemos um ataque tremendo”..

documenta quinze

Complementares, as participações de Farid Rakun e Graziela Kunsch iluminaram os fundamentos curatoriais da documenta quinze, encerrada em setembro. Artista, Rakun é também membro do ruangrupa, coletivo indonésio de Jakarta, que esteve à frente da conceituação e montagem da mostra. Artista, mãe e educadora, Kunsch representou o Brasil no projeto em Kassel, na Alemanha, com sua Creche Parental Pública.

No começo de sua fala, Rakun mostrou, no telão, um dos primeiros pontos de encontro do ruangrupa. Criado e atuante entre os anos de 2016 e 2017, esse espaço que ele denominou de ecossistema, em que ele e seus companheiros começaram a lidar com a noção de lumbung em si, de ser um coletivo composto de coletivos, onde um dos objetivos era o compartilhamento de recursos diversos.

“Quando fomos convidados para a documenta, decidimos que não queríamos que o projeto fosse extraído de Jakarta e levado a Kassel. Não queríamos fazer coisas que não estivessem de acordo com a nossa pauta. E a pauta europeia é ocidental. A documenta queria fazer parte da trajetória que temos seguido ao longo de quase 20 anos, nós então devolvemos o convite à documenta, para mostrar, lá, o que temos feito na Indonésia, que é, indiscutivelmente, o produto de um Estado falido”, disse o curador.

Rakun afirmou que seu país não conseguiu fornecer infraestruturas para as artes e a cultura, ou ao menos o tipo de arte e cultura em que eles de fato estão interessados. Argumentou que não são um grupo alternativo, porque sequer existe algo tido como mainstream na Indonésia, algo para o grande público.

“O que estamos fazendo na verdade é construir, antes e acima de tudo, infraestruturas. E a partir delas tentar entender se o que criamos coletivamente pode originar não apenas uma soma de partes, mas algo que de fato tenha resultados artísticos e estéticos”, afirmou.

O curador também salientou que o trabalho feito na documenta quinze não partia de um tema — lumbung, lembrou ele, significa literalmente celeiro de arroz, em sua língua —, mas de um conjunto de práticas em aberto, ilimitadas. “Não procuramos artistas que ilustrassem um conceito. Era muito mais algo ligado a uma maneira de fazer coisas”, explicou.

Em seguida, Rakun disse que a curadoria da documenta quinze tentou não seguir a lógica de uma direção de arte clássica, numa posição de jogo de poder, optando por delegar decisões às pessoas. E antes mesmo do início da mostra, o ruangrupa buscou agrupar artistas, fazer com que antes de sua abertura eles se conhecessem e construíssem afinidades, adquirissem confiança e, essa era a esperança, pudessem participar de modo a fazer projetos colaborativos também.

O curador elencou alguns dos pontos altos da edição de 2022 da documenta, entre eles a ausência de competitividade entre os participantes — Graziela, afirmou ele em sua fala, poderia ser um exemplo de alguém que, apesar de tomada por certa “febre lumbung”, devido ao entusiasmo com seu projeto, jamais buscou holofotes. Outro fruto da documenta quinze é a lumbung gallery, um dos muitos desdobramentos de sua experiência que devem vir a seguir. Ele lembrou que cerca de 95% dos colaboradores — algo em torno de 1500 nomes — que convidou não são representados por galerias.

“Estamos tentando pensar numa forma de galeria, por falta de palavra melhor, mais conectada com os nossos valores. A precificação, por exemplo, é algo em que temos pensado muito. Como adquirir como colecionador, como colecionar coletivamente, como colecionar trabalhos que não sejam concebidos como objetos”, explica. “Não se trata apenas de comprar, mas pensar contratos que incluam um compromisso político ou ideológico, do comprador em relação ao artista.”

Um dos projetos mais comentados da documenta quinze, uma estrutura comunitária dinâmica que traduziu bem a proposta de lumbung do ruangrupa, foi a Creche Parental Pública, da mãe, educadora e artista brasileira Graziela Kunsch, que encerrou o VII Seminário Internacional. Em sua apresentação, Kunsch recordou como nasceu seu projeto. Numa carta endereçada ao ruangrupa, ele falava sobre o “Chão da Manu”, ou o projeto de uma creche parental, que então seria tão somente um pedaço de chão (ou um enorme tapete de pano), com materiais abertos de brincar sobre ele.”

“Esse chão hoje existe e foi montado algumas vezes no Goetheanlage, meu parque preferido na cidade. Mas o projeto original cresceu — para ocupar uma sala do Fridericianum — e esteve, desde o início, fortemente enraizado na cidade de Kassel. A partir da minha pesquisa local, conheci Elke Avenarius, que se tornou uma grande parceira de trabalho. Juntas, desenhamos o espaço que ocupa aproximadamente 200 metros quadrados, no térreo do museu”, contou Kunsch, em leitura de sua carta.

Segundo Kunsch, o espaço por ela concebido para a documenta quinze era dividido em salas de ver e ler e uma creche parental, com entrada gratuita pelos fundos do museu. A área da creche possuía espaços de cuidado — como trocadores de fralda, uma cozinha, poltronas de amamentação e uma sala de dormir, onde os adultos cuidam dos bebês. E a creche possuía espaços de brincar, onde os bebês eram capazes, como diria a pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984), de cuidar de si mesmos. Adultos estavam ali, presentes, explica a artista, mas não precisavam ensinar as crianças como brincar ou como movimentar seus corpos.

Após o término da documenta quinze, explicou Kunsch, seu desejo era remontar a creche parental em São Paulo, enviando móveis e materiais de brincar por contêiner. “Mas muitas famílias começaram a me procurar, defendendo a permanência do projeto em Kassel. Perguntaram-me se havia algo que elas poderiam fazer, para o projeto continuar na cidade. Eu me limitei a responder que elas poderiam se auto-organizar. Bem, elas se auto-organizaram”, contou a artista, no texto que leu durante sua apresentação.

Segundo Kunsch, diversas famílias enviaram cartas para políticos locais, e a demanda que ela recebeu do grupo foi listar tudo o que comporia o trabalho, no caso de sua compra pela prefeitura de Kassel, por meio da lumbung gallery.

“Estou preparando um pequeno dossiê sobre o trabalho, mas, em linhas gerais, a minha proposta, e da minha parceira Elke Avenarius, é que a prefeitura possa designar um novo espaço para a creche ser instalada, que assuma uma reforma básica do espaço (caso isso seja necessário para o espaço ser habitado — por exemplo, um banheiro e cuidados com elétrica e hidráulica), e nós duas cuidaremos de adequar o projeto à nova situação, usando parte do valor da venda para essa produção/construção”, prosseguiu a artista. “É claro que essas propostas levantam o maior desafio da continuidade do projeto, que é: quem cuida de tudo isso?”.

Para responder essa pergunta, continuou Kunsch, ela contou como gosta de trabalhar como artista: “No lugar de pensar e decidir tudo sozinha, sempre busco deixar a ideia inicial o mais aberta possível e envolver pessoas de fora do contexto da arte nessa construção. O próprio sentido de arte é construído coletivamente, ampliando os entendimentos do que é arte e a própria noção de arte”.

Para encerrar, Kunsch afirmou que a continuidade da proposta poderia implicar em uma mudança no título em alemão: “No lugar de Eltern und Kleinkinder Krippe [creche de pais e bebês], passar a chamá-la de Öffentliche Elterliche Krippe [Creche Parental Pública], marcando a transformação do projeto artístico em política pública que, como semente — para usar o vocabulário lumbung —, ou como as árvores de Beuys, poderá se espalhar e abrir novas paisagens. Tanto para a vida, como para a arte”, concluiu.

Laboratório de história

Vista do Museu do Ipiranga. Foto: Heloísa Bortz

O mais novo museu da cidade de São Paulo condensa de forma instigante passado e presente. Instalado num prédio eclético, que começou a ser construído ainda no século 19 e que foi inteiramente restaurado a partir de uma concepção bastante atual de museologia e inclusão, o Museu do Ipiranga tem dois pilares estruturantes – o estímulo à pesquisa e a formação de um público amplo – e um objeto central: a cultura material. Apresenta-se como um “laboratório de história”, em contraposição direta a uma visão arcaica e fetichizada da história, na qual corações inchados de formol de ex-monarcas e símbolos e datas nacionais são sequestrados com o objetivo de perpetuar as estruturas de poder construídas pelas gerações passadas.

Transformar o local erigido para ser um memorial de sustentação de um discurso de protagonismo de São Paulo na construção da nação e da heroica figura do bandeirante, em um espaço de investigação no qual os objetos, documentos e outros vestígios materiais tornam-se protagonistas, não é uma tarefa fácil. Sobretudo se levarmos em consideração a existência de uma série de restrições decorrentes dos tombamentos do edifício como patrimônio arquitetônico e imaterial pelas três instâncias de preservação.
Uma das soluções encontradas foi o uso massivo de recursos audiovisuais no novo projeto museológico. Logo na abertura, oficializada em 6 de setembro na esteira das celebrações do bicentenário, frustradas pelo uso político da data, 56 produções audiovisuais complementavam as vitrines, mostruários e obras de arte espalhados pelo prédio. A previsão é de que nos próximos meses outras venham a se somar, totalizando 70 peças digitais, dialogando com a estrutura estável e problematizando assim o discurso oficial que impregna o projeto ideológico do museu.

O desenho curatorial também aplicou fortemente recursos táteis, permitindo que o visitante – e não apenas aquele que tem alguma limitação visual – toque em diversas obras e objetos que compõem as várias exposições, diminuindo assim a distância entre sua existência real e simbólica. São mais de 300 recursos do gênero, que o público timidamente vem descobrindo, indo de um jacaré taxidermizado (representando o período em que o museu também abrigava coleções de arqueologia e etnologia, transferidas para outras instituições da USP na década de 80) a réplicas em relevo de peças do acervo, como o retrato de Maria Quitéria ou uma sala de descanso na qual é possível experimentar de forma concreta os vários modos de sentar na história do mobiliário brasileiro.

A reforma física, que vem atraindo o interesse de um público ávido por novidades, mais do que dobrou o espaço dedicado às exposições e circulação dos visitantes. Ela também atualizou e recontextualizou o espaço, tornando possível essa expansão e a inclusão de novos olhares e interpretações sobre o acervo, a arquitetura do prédio e o entorno, observado agora a partir do mezanino instalado no topo do edifício.

Saíram excessos como as dourações nas colunas e volutas, a cor foi harmonizada e padronizada num suave tom de amarelo originário (as paredes do prédio foram submetidas a uma verdadeira pesquisa arqueológica a fim de encontrar a tonalidade de origem). As salas foram integradas, os andares superiores foram incorporados ao museu e as atividades (como acervo, restauro, pesquisa etc.) ali exercidas foram transferidas para outras casas alugadas nas redondezas do bairro do Ipiranga.

Obras fundamentais da coleção, como a célebre tela Independência ou Morte, de Pedro Américo, que recriou e mitificou a encenação do grito do Ipiranga muitas décadas depois do gesto simbólico da Independência (a tela é de 1888), ou a pintura Partida das Monções, de Almeida Júnior, foram restauradas e ganharam nova vitalidade e novo significado.

Reafirmando seu papel como museu universitário, no qual a pesquisa tem importância fundamental, a equipe curatorial da instituição se apoiou nesse processo de renovação para trazer a público algumas de suas linhas de investigação, organizando a experiência de visita em 11 diferentes mostras de longa duração, articuladas em dois eixos bastante didáticos, intitulados Para Entender o Museu e Para Entender a Sociedade, que ficarão em exibição por um período de cinco anos. Além disso, está prevista para novembro a inauguração de uma exposição temporária. Memórias da Independência reunirá um conjunto expressivo de elementos sobre os vários movimentos de libertação, ampliando a questão para além de São Paulo e do mito do Ipiranga.

É uma imersão intensa num conjunto extremamente amplo e diverso e que corresponde a apenas uma pequena ponta desse grande universo museológico, já que apenas 3,8 mil dos mais de 450 mil itens conservados pelo museu fazem parte da exposição.

Em todo o conjunto, há uma clara tentativa de encontrar no ordinário, no cotidiano, os nexos que nos permitem compreender melhor diferentes aspectos de nossa cultura, resgatada por meio de objetos e histórias cativantes, como a coleção de brinquedos de diferentes idades, materiais e formas – usada no núcleo dedicado a falar sobre o trabalho de conservação exercido pelo museu (ao lado de outras funções primordiais como a comunicação, a catalogação e a coleta) –, um magnífico conjunto de enxadas utilizadas pela imigração japonesa ou ainda a tocante vitrine intitulada “as coisas de meu pai”. Ali estão reunidos os pertences, memórias e afetos guardados cuidadosamente por Enedino Vieira Telles, até sua morte, aos 88 anos de idade, formando um pequeno museu afetivo, ativado para testemunhar sobre a relação entre os homens e os objetos de seu cotidiano.