Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto
Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto

Não convide o empresário gaúcho Justo Werlang para ceder as obras de sua coleção para uma coletiva – não importando o eventual recorte curatorial – que acabe por mesclar os trabalhos dos diferentes artistas que compõem seu acervo. Convide, sim, para uma exposição dedicada somente a um dos artistas que ele coleciona. Uma mostra assim revela o modo criterioso com que Werlang elabora sua coleção, um exercício que envolve certa proximidade com o artista, a observação atenta ao que há de contínuo e coeso na trajetória da pessoa, assim como a atenção aos eventuais pontos de inflexão, às possíveis rupturas ao longo do tempo.

“Não convide”, claro, é força de expressão e blague. Se solicitado o empréstimo de uma obra da coleção, Werlang prontamente atende, desde que o artista concorde em participar da exposição. O mesmo vale para uma eventual mostra de trabalhos presentes na sua coleção: atende-se, se os artistas aceitarem. Porém, caso se peça uma “mostra da coleção”, aí “é necessário que o conceito, que organiza a coleção, possa ser percebido na exposição montada”, diz Werlang à arte!brasileiros. “Ou seja, que se apresente um conjunto bastante significativo de obras de cada um dos artistas, a fim de se perceber o percurso artístico, os elementos constituintes da linguagem personalíssima de cada artista, as questões trazidas à luz, sua intenção e seu pensamento”.

Werlang pondera que, no entanto, para esse fim, é necessária uma quantidade significativa de obras, algo bastante difícil que se realize, pelo espaço físico e orçamento. A solução para que se mostre a coleção, afirma ele, é que exposição se concentre na obra de um dos artistas.

Dito isso, uma mostra exemplar do modus operandi de Werlang é a exposição Armadilha para capturar sonhos, que fica em cartaz até o dia 22/10 no Farol Santander de Porto Alegre (RS) e apresenta 63 pinturas do goiano Siron Franco (75), um dos (poucos) nomes que entram para o elenco de artistas do acervo do empresário gaúcho. Com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, que foi curador da 33ª Bienal de São Paulo, a exposição é a segunda mirada do Farol Santander sobre a lógica do colecionismo de Werlang. A primeira aconteceu em 2017, com os trabalhos de Karin Lambrecht pertencentes ao empresário. Em seu dream team estão ainda Iberê Camargo, Xico Stockinger, Nelson Felix, Daniel Senise, Mauro Fuke e Felix Bressan, com criações adquiridas ao longo de cerca de três décadas.

O primeiro convite para realizar uma exposição de seu acervo no Farol Santander (então Santander Cultural) ocorrera em 2016. “Entendo que seria possível realizar uma mostra de trabalhos da coleção, mas não uma exposição da coleção”, diz Werlang. De tal forma, avalia o empresário, a mostra não refletiria seus propósitos como colecionador, seu objetivo de, “através de um conjunto significativo de obras, possibilitar a percepção do percurso artístico de cada um dos artistas, evidenciando o conjunto de vocábulos visuais gerados e utilizados, a linguagem personalíssima de cada um, as questões de que tratam, o pensamento ali presente e expresso”, afirma. “E, mesmo no caso dos cadernos, estudos, esboços, desenhos, realizar o propósito [de revelar] a gênese da obra”.

Em Armadilha para capturar sonhos acompanha-se 50 anos da carreira de Franco, numa expografia com sete núcleos: Cosmos, Segredos, Mitos, Homem, Biomas, Violência e Césio, que reúne um dos trabalhos mais notórios de Franco: sua série sobre a catástrofe ambiental e humana provocada em 1987, em Goiânia, pelo manuseio incorreto, por parte de catadores de recicláveis, de um aparelho de radioterapia, que levou à contaminação radioativa de várias pessoas com o isótopo Césio-137.

Os núcleos abrigam as obras figurativas de Franco, assim como as abstratas e também as fronteiriças entre um estilo e outro, por meio das quais Siron Franco se debruça sobre vida, arte e sociedade. Pérez-Barreiro nominou os núcleos e esboçou uma primeira seleção de obras. “Em razão de sua generosidade, permitiu-me sugerir a inclusão de alguns dos trabalhos. Certamente por colecionar assim, [acompanhar] tão de perto, a história, o motivo, a construção de cada um dos trabalhos da coleção, que eram muito próximos de mim”, pondera o empresário. Um das obras mais antigas de Franco, Argonauta (1973), está em exibição no Farol Santander, assim como uma das mais recentes, A grande rede, deste ano.

WERLANG

Formado em Administração de Empresas pela PUC-RS (1977) e em Direito pela UFRGS (1978), Justo Werlang tem 67 anos. Empresário, é sócio-gerente da G.A.Werlang – Gestão e Ambiente Ltda, empresa com foco em desenvolvimento sustentável. Sua relevância no panorama das artes no Brasil extrapola o notório colecionismo disciplinado e judicioso. Salta aos olhos a capilaridade de sua atuação institucional. Werlang participou da criação da Fundação Iberê Camargo (1995) – onde foi diretor e vice-presidente (1995 a 2008), diretor-presidente (2016 a 2020), conselheiro (1995 a 2016), e atualmente é diretor.

O empresário também esteve à frente da criação da Fundação Bienal do Mercosul (1995), em que foi diretor-presidente (1995 a 1997 e 2006 a 2008) e diretor vice-presidente (2003 a 2005). Desde 1997 faz parte do Conselho de Administração da Fundação Bienal do Mercosul, que atualmente preside (2023 a 2024). Fora do Rio Grande do Sul, atuou como diretor vice-presidente na Fundação Bienal de São Paulo (2009 a 2016) e seu diretor (2017 a 2018). Leia a seguir demais trechos da entrevista concedida por Justo Werlang à arte!brasileiros:

ARTE!✱ – Como se deu o início de seu colecionismo?

Justo Werlang – O que havia no começo, há cerca de 30 anos, não era uma coleção, mas um conjunto de obras. Quando entraram os trabalhos de Iberê Camargo é que houve um rompimento, que me exigiu tirar, sei lá, 80%, das obras que tinha em casa. O fio condutor da coleção surge, digamos, uns três anos depois que nós adquirimos o primeiro Iberê. Para então, com o tempo, formar um volume significativo em que se perceba o percurso do artista. Daí quando me pediam para mostrar a coleção, eu dizia que não, porque era uma coleção muito jovem, uma coleção muito jovem para o seu objetivo.

ARTE!✱ – Um desses convites partiu justamente do Farol Santander, ainda em 2016. Como sua resistência foi contornada? 

Werlang – A questão é que o conceito da coleção se desfaz à medida que alguém vai escolher uma ou outra obra lá de dentro e misturar os artistas. Não vai apresentar a coleção, mas obras dela. Porque a coleção se constituí pela linha condutora, pelo objetivo. Então, o Santander me convidou para fazer a exposição da coleção, eu disse não, mas depois respondi que, se eles quisessem, poderiam expor um artista, porque aí estariam expondo a coleção.

ARTE!✱ – Seu colecionismo pressupõe também um diálogo com os artistas, em que você busca entender suas narrativas. Como essa conversa se dá e quais os eventuais desdobramentos para você e para o artista?

Werlang – A coleção hoje é ativa nos artistas vivos, especialmente no Siron, Nelson Félix, Daniel Senise, na Karin Lambrecht e no Mauro Fuke, que continuam produzindo. Meu sistema de coleção me exige uma convivência continuada com cada um desses artistas, e isso acaba por entrelaçar outras relações, como relações afetivas, relações de amizade, uma participação em projetos. Então, essa participação em projetos começa mesmo antes de termos a coleção, quando eu comecei a financiar a produção de alguns escultores, no início dos anos 1990. Como o Xico Stockinger e o Gustavo Nakle. Mas Mantenho obras de outros artistas em casa, como Vasco Prado e Nakle, que não constituem a coleção. Fazem parte do acervo de obras.

ARTE!✱ – Por que você opta por não ter artistas estrangeiros em sua coleção?

Werlang – É uma questão de acesso à obra, ao artista. Cheguei a pensar em ter trabalhos de um artista radicado em Madri, mas é inviável fazer a coleção nos moldes como realizo, de um artista estrangeiro no país.

ARTE!✱ – Como teve início sua trajetória institucional?

Werlang – Gustavo Nakle, Maria Tomazelli e outros artistas se reuniam em um lugar chamado Poleto, para beber cerveja. Lá discutiam o fato de estarem fora do centro, de São Paulo, Rio de Janeiro. E discutiam a possibilidade de participarem mais do mercado de arte nacional. Uma das ideias era fazer uma bienal. Um dia eles se encontraram com uma senhora chamada Maria Benites, argentina radicada em Porto Alegre. E a Maria Benites é um trator de trabalho, uma realizadora. Ela se envolveu com esse grupo e disse: “Vocês precisam do apoio do estado e do apoio do empresariado”. Ela tinha um contato com a Maria Helena Gerdau Johannpeter, esposa do Jorge, e a partir dali o Jorge se envolveu, fez um jantar para o qual foram convidados empresários, galeristas, artistas e representantes do poder público. Nesse processo, apareceram as pessoas que queriam ser presidente do que viria a ser a Bienal do Mercosul. E os caras que pretendiam ser, os artistas não queriam nem saber deles. A Maria Benites começou a falar que eu tinha de assumir o posto. Falei que se o Jorge aceitasse a gente fazer um conselho, um grupo sem presidente, então eu participaria. Eu me vi obrigado a assumir, depois tive de vencer diversas inércias. Não havia capital humano para fazer uma montagem, não tinha iluminação, arquitetura, não tinha nada. Então começar a fazer isso foi bem complicado, tomou muito meu tempo.

ARTE!✱ – Em 1995, mesmo ano em que se iniciou o processo para criar a Bienal, estava também começando o projeto para a Fundação Iberê Camargo. Como foi sua atuação à época?

Werlang – O Jorge me convidou para ser tesoureiro lá. Eu aceitei porque, enfim, a gente era parceiro e eu tinha que fazer. Não gosto de ser tesoureiro, não era minha habilidade. Na Iberê eu fiquei durante 13 anos, muito ativo, até nós inaugurarmos o prédio [em 2008].

ARTE!✱ – E como se deu sua ligação com a Bienal de São Paulo?

Werlang – Quando inauguramos a sede da Fundação Iberê Camargo, solicitei meu afastamento e, coincidentemente, deixei a presidência da 6ª Bienal do Mercosul. Depois de 12 meses sem participar de qualquer evento ligado às artes visuais, resolvi ir à abertura da feira SP-Arte. Nos corredores, encontrei o Júlio [Landmann, que havia presidido a 24ª Bienal], e Heitor Martins [que presidiu a 29ª e 30ª edições, de 2009 a 2012]. Na conversa que se seguiu com Heitor, ele disse que recebeu o convite para montar uma diretoria para Bienal, e perguntou-me o que diria sobre o convite, naquele momento em que muitos haviam desistido da instituição. Minha resposta foi no sentido de que deveria sim, aceitar, pois o patrimônio de contribuições da Bienal era muito maior do que o buraco em que se encontrava. Heitor emendou então: “E você estaria junto conosco?”. De fato, o envolvimento naquele desafio não estava dentro de meu projeto. Pensei, então, no que havia significado a Bienal na carreira de Iberê, no percurso de Daniel, Siron, Karin, Nelson Felix. Assim, aceitei. Éramos um time maravilhoso, discutíamos, não concordávamos com tudo, até brigávamos, mas havia uma enorme comunhão no objetivo de reposicionar a instituição que tudo harmonizava.

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