“Mercado”, obra de 2002 que está na mostra. FOTO: Divulgação
“Mercado”, obra de 2002 que está na mostra. FOTO: Divulgação

Sentindo-se deprimido por conta dos acontecimentos políticos brasileiros dos últimos anos – desde o impeachment de Dilma Roussef até a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro –, o poeta e artista visual Augusto de Campos, hoje aos 88 anos, se encontrava “pouco animado a expor qualquer coisa”, como ele mesmo conta. Após 70 anos de carreira, “estava sem muita disposição e paciência com ‘artices’ e ‘artismos’”.

Quando veio o convite da Luciana Brito Galeria para que realizasse uma mostra individual, titubeou, mas aceitou principalmente pela “oportunidade de manifestar o meu inconformismo”. Para isso decidiu reunir em uma mesma exposição trabalhos antigos e atuais que, em conjunto, sinalizam para os paralelos entre os piores períodos da ditadura militar e os dias de hoje.

“Além da horrorosa guinada à direita, nunca vi tanta mediocridade junta, tanta gente feia, tanto retrocesso, nem mesmo na ditadura militar. É um pesadelo, em que tudo foi entortado e rebaixado, e uma figura monstruosa como Trump aparece como ‘deus ex machina’, bajulado e bafejado por nossos governantes na pior paródia que se poderia imaginar da paródia histórica que foi a ditadura vintenária que nos assombrou”, dispara o escritor.

Criador, ao lado de Haroldo de Campos e Décio Pignatari nos anos 1950, do que ficou conhecido como poesia concreta e dono de uma vasta obra “verbovicovisual” – termo que se refere às dimensões semânticas, sonoras e visuais da palavra –, Augusto expõe agora, na mostra Poemas e Contrapoemas, desde obras célebres como LUXO, de 1965, até inéditas como CLÁUSULA PÉTREA. Aparentemente uma simples transcrição de um artigo da Constituição brasileira, a poesia de 2018 se revela, no contexto atual, como crítica contundente à “situação jurídico-política do país” e à prisão do ex-presidente Lula.

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, diz o poema de Augusto, que além de artista visual, poeta, escritor e tradutor é formado em direito e foi procurador do Estado durante 40 anos. Mas o próprio Augusto ressalta que a exposição não apresenta somente poemas de viés político. Obras com outras temáticas e seu trabalho com diferentes materiais e suportes – em papel (serigrafia e impressão), em tela e em vinil – estão presentes na Galeria Luciana Brito a partir deste dia 30 de março.

Depois de longa trajetória sendo reconhecido majoritariamente no campo das letras, Augusto começa a ganhar mais espaço também no campo das artes, destacadamente a partir da mostra retrospectiva REVER, realizada em 2016 no Sesc Pompeia. Em 2017 – ano em que recebeu o Grande Prêmio Janus Pannonius, espécie de Nobel da poesia – realizou sua primeira individual em uma galeria de arte, também na Luciana Brito.

Por e-mail, Augusto de Campos respondeu ao que seria uma curta entrevista enviada pela ARTE!Brasileiros – apenas quatro perguntas –, mas que se tornou um longo e contundente texto de um pensador que nunca temeu tomar lado na história. Leia abaixo a íntegra.

ARTE!Brasileiros – A exposição Poemas e Contrapoemas reúne obras de diferentes períodos, criadas desde os anos 1960 até hoje. Como se deu a escolha dos trabalhos e como você enxerga estas obras quando colocadas em conjunto?

Augusto de Campos – Tudo começou com um convite que recebi da Galeria Luciana Britto. Eu, na verdade, estava pouco animado a expor qualquer coisa, deprimido como me encontro com a situação jurídico-política do país, sem muita disposição e paciência com “artices” e “artismos”. Mas resolvi acolher a ideia quando aceitaram que eu expusesse, além de trabalhos novos, alguns dos meus “contrapoemas”, obras de contestação tanto à noção convencional de poesia quanto ao momento político que atravessamos. No meu estado de espírito, era difícil para mim, um poeta de vida longa, com 70 anos de atuação artística, “sobrevivente” de várias gerações, pensar em voltar a exibir-me tão cedo.  Mas a proposta que me fizeram foi de uma mostra reduzida, com poucos trabalhos em grande formato e em novos materiais, não todos inéditos. E a oportunidade de manifestar o meu inconformismo, rara para mim, que pouco espaço tenho nas mídias usuais, prevaleceu quando me ocorreu associar alguns novos experimentos contestatários a um poema que nasceu de um momento análogo, LUXO, que publiquei em 1965 e que agora volto a exibir de uma forma diferente. Há um arco, portanto, nessa curva temporal, de mais de meio século, embutida na mostra.

Você vê paralelos entre o Brasil de hoje e o de quando começou a produzir os “contrapoemas”?

Sim, vejo paralelos. Compus LUXO, em 1965, em plena vigência do golpe militar imposto no ano anterior, e o poema me foi sugerido por um incidente que ocorreu em dezembro de 1964, na exposição dos Popcretos que fiz com Waldemar Cordeiro, na Galeria Atrium em São Paulo. Quando fomos retirar as obras, terminada a mostra, todas elas tinham sido danificadas com ofensas inscritas em esferográfica. Numa das minhas obras, que tinham claro viés antiditadura, haviam escrito a palavra “lixo”. O anúncio de apartamentos de alto luxo, publicado no ano seguinte, com fototipos kitsch-decorativos, associou-se em minha mente à palavra com que tentaram vandalizar aquele meu trabalho e me levou à concepção do poema, que buscava satirizar a classe média e alta, que, em sua maioria, apoiava o golpe de então. LUXO foi publicado como poema-objeto e como encarte em revistas, livros e vídeos, aqui e no exterior.  Na ocasião, tinha-me ocorrido fazer uma versão diferente, em formato redondo, como uma requintada tampa de lixo, que acabou descartada por falta de fundos e de tecnologia. Tentamos, agora, uma aproximação dessa ideia com a melhor técnica disponível. O poema LUXO é a ponta do arco que começa nos anos 60, sob a égide do lema de Maiakóvski — “sem forma revolucionária não há arte revolucionária” — e continua nos “contrapoemas”, concreto-conceituais, compostos mais recentemente. Destaco entre eles CLAUSULA PÉTREA, que nada mais é do que um ready made. Trata-se da transcrição do inciso LVII do artigo 5º da nossa Constituição, preceito que só pode ser alterado, ampliado ou atenuado por uma nova Constituinte, e que proíbe que um cidadão seja considerado culpado antes de condenado em última instância, e não apenas em segundo julgamento, e preso como ocorreu com o ex-presidente Lula, em evidente desrespeito à Lei Maior. Como essa matéria será, ao que se anuncia, em breve rediscutida pelo Supremo Tribunal Federal, o poema vem a calhar, e insisto em compartilhá-lo, na esperança de que o egrégio tribunal, Supremo entre os Poderes, desta feita não se atemorize diante das pressões de haters, extremistas de direita e militares radicais e faça prevalecer a norma fundamental da Carta Magna, que consagra a presunção de inocência e assegura os nossos direitos individuais. A prevalecer a atual decisão, que divide a Alta Corte, e contraria também o princípio curial “in dubio pro reo”, teremos prisões prematuras, escassas de provas, e que induzem as instâncias superiores a manter os julgados, ainda que injustos ou carentes de suporte probatório, diante do dano irreparável a que se submete quem tiver sido privado de sua liberdade e  desmoralizado em um processo judicial a meio do caminho. Pois como indenizar um prisioneiro afinal inocentado? Não. Que os juízes trabalhem. Para os casos de periculosidade evidente, há o remédio da prisão cautelar. Prisões políticas não se justificam.

Como enxerga o atual momento político e a ascensão da extrema direita?

Quanto à situação política atual, acho-a simplesmente deplorável. Além da horrorosa guinada à direita, nunca vi tanta mediocridade junta, tanta gente feia, tanto retrocesso, nem mesmo na ditadura militar. É um pesadelo, em que tudo foi entortado e rebaixado, e uma figura monstruosa como Trump aparece como ‘‘deus ex machina”, bajulado e bafejado por nossos governantes na pior paródia que se poderia imaginar da paródia histórica que foi a ditadura vintenária que nos assombrou.

O conteúdo dos trabalhos nunca está dissociado das formas, dos materiais, das cores, dos modos de expor. Gostaria que você falasse um pouco sobre como se deu essa parte da pesquisa e produção da nova exposição.

A mostra não é constituída apenas de poemas de viés político. Há ainda poemas de outra natureza, menos disfóricos, alguns conhecidos, mas apresentados de forma e suportes diferenciados, e que tentam compactar-se num recorte que eu diria ideogrâmico, buscando constituir um conjunto formalmente coerente. Troquei muitas ideias com os organizadores, que compartilharam dúvidas e soluções comigo. Dada a relação entre as dimensões dos trabalhos e o espaço disponível da galeria, não podíamos contar com grande número de obras. Por outro lado, havia limitações gráficas para a expansão das dimensões originais, já que a maior parte das obras foi produzida para formatos menores, nem todos suscetíveis de vetorização suficiente para que pudessem ser ampliados sem perda de qualidade, produzidos que foram por mim, quase todos, com programação digital. Cada caso foi analisado e resultou de uma pesquisa própria de escolha de material compatível, com vistas à tônica geral da mostra, na qual as obras são idealmente abraçadas pelo poema CIDADECITYCITÉ, de 1963, numa versão especialmente concebida para o espaço da galeria.

 

Poemas e Contrapoemas

Luciana Brito Galeria – av. Nove de Julho, 5162

De 30/3 a 1/6

Entrada gratuita

2 comentários

  1. Imenso parabéns em prestigiar a arte maior de Augusto e a sua admirável coragem política, contra a tendência dos meios intelectuais de se comportar como se a esfera pública não tivesse a ver com o que fazem – ou deveriam fazer

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