Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz
Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz, 2014. Foto: João Maurício Bragança

Difícil encontrar lugar ou situação que condense de forma mais paradigmática contradições históricas e sociais do País como a região do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, que há anos se encontra ameaçada pelo retrocesso e descaso. Construído em 1811 para receber os milhares de africanos que tornaram o Brasil – e o Rio –  o principal porto de destino do tráfico escravo ao longo do século 19 e reformado em 1843 para receber Thereza Christina, que viria a ser Imperatriz do Brasil, o Valongo acabou por cair no esquecimento ao longo do século 20, enterrado sob os escombros da reforma Pereira Passos. Sobrevivia apenas nos registros históricos e iconográficos de autores como Maria Graham, Debret, Rugendas e Thomas Ender. Foi redescoberto em 2011, durante as escavações para a reforma da área, que deveria transformar-se no prometido Porto Maravilha, cartão postal ligado ao projeto dos Jogos Olímpicos de 2016. Dois museus nasceram nesse entorno, um deles ironicamente intitulado de Museu do Amanhã, enquanto o cais real continua inundando quando há chuva.

Durante os trabalhos de prospecção foram encontrados milhares de registros arqueológicos, que permitiriam conhecer um pouco mais da cultura material carioca da primeira metade do século 19, mas que ainda hoje se acumulam longe dos olhos do público em 243 contêineres, abertos de quando em quando para limpeza e fiscalização, mas rapidamente escondidos novamente. Graças a uma forte movimentação da sociedade civil, o local foi alçado à categoria de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 2018 – em categoria semelhante a de outros sítios históricos de memória sensível como o campo de concentração de Auschwitz ou a cidade de Hiroshima. Mas o cais e seu entorno encontram-se ainda em completo abandono, descuidados pelas instituições que deveriam salvaguardá-lo.

“Todos estão faltando com sua responsabilidade, alguns de forma escandalosa, outros por omissão”, afirma a defensora geral, Rita Cristina de Oliveira, uma das responsáveis pelo esforço coletivo de recuperação do sítio e pela viabilização do projeto de preservação e disseminação dessa memória. Várias iniciativas, como diferentes processos judiciais envolvendo a defensoria e o Ministério Público Federal, vêm sendo tomadas, mas poucos resultados foram obtidos até o momento. São múltiplas as faces deste descaso.

Docas Pedro 2o

Recentemente, ganhou mais visibilidade a situação do prédio conhecido como Docas Pedro 2o, que passou por uma vistoria no último mês de maio. Atualmente sob a guarda da Fundação Palmares e em estado bastante precário, a construção necessita de medidas efetivas de proteção e restauro. Além de encontrar-se na área tombada em âmbito internacional, abrigar (mesmo que precariamente) todo o material levantado nas pesquisas arqueológicas da região e ser o local que naturalmente deve sediar o centro de referência da Celebração da Herança Africana e os trabalhos do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (LAAU), o prédio é ainda uma um marco fundamental da história arquitetônica do Rio de Janeiro. Projetado pelo engenheiro negro André Rebouças, é a primeira construção no País a não usar mão de obra escrava.

Docas Dom Pedro II, 2015. Foto: João Maurício Bragança
Docas Dom Pedro II, 2015. Foto: João Maurício Bragança

No entanto, os planos de recuperação ainda estão bastante distantes e inadequados. Vale destacar, por exemplo, que a Fundação Palmares tem planos de instalar parte de seus escritórios nesse endereço, deturpando e diminuindo a vocação memorialística do local. Ou que o projeto ora em tramitação no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não prevê o retorno do prédio às condições originais do século, mas incorpora mudanças estruturais realizadas ao longo do tempo, como algumas alterações realizadas quando o galpão funcionou como depósito de armamentos, durante a ditadura militar.

A precariedade reinante no Docas Pedro 2o se espraia pela área toda. O sítio onde funcionava o Cais – por onde, calcula-se, desembarcaram quase um milhão de escravizados em pouco mais de três décadas – também encontra-se bastante comprometido. Se ao longo do século 20, a região foi abafada por um manto de esquecimento e um evidente desejo de branqueamento de uma área central conhecida como Pequena África, ao longo do século 21 ainda reina uma estratégia de desmonte de políticas de enfrentamento do racismo e da desigualdade.

Novas perspectivas

Como afirmam os pleiteantes no relatório de candidatura à Unesco, “um sítio arqueológico não fala sozinho”, ele precisa de todo um esforço da sociedade para que seu caráter e simbolismo venham à tona. Há resistência e há esforço da comunidade, que se organiza para fazer frente ao descaso governamental, sobretudo na instância federal que, mais uma vez, põe em prática a estratégia do desmonte. Vários acordos firmados no passado ficaram no papel e houve alteração bastante prejudicial no conselho gestor, enfraquecendo seu papel. Algumas iniciativas mais recentes, como a destinação, no âmbito do Termo de Ajustamento de Conduta relacionado ao caso de assassinato de João Alberto Silveira Freitas nas instalações do Carrefour e as políticas de reparação vinculadas ao caso, trazem novas perspectivas de financiamento, com a destinação de R$ 2 milhões para financiar a elaboração de projeto museológico na região do Cais do Valongo, de um total de R$ 115 milhões pagos pela empresa. No entanto, a política de desmantelamento implementada pelo governo – expressa na frase de Bolsonaro de que seu governo precisava “desconstruir muita coisa” – segue valendo.

Felizmente nem tudo depende dessa estrutura rígida e negligente entre os poderes, como exemplifica e sinaliza o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que acaba de reabrir sua exposição permanente, traçando o percurso de homens e mulheres trazidos como escravos ao Brasil, mostrando importantes vestígios das diversas escavações realizadas no local e abrindo espaço para um diálogo permanente com a arte contemporânea, como a mostra atual de Geleia da Rocinha.

Instalado em cima do cemitério que recebia os corpos dos desembarcados que não resistiam à brutalidade da viagem e dos maus-tratos, o Instituto nasce de uma descoberta casual, feita em 1996, quando a família Guimarães dos Anjos encontra ossadas sob sua casa durante uma reforma. Desde então a família vem desenvolvendo um importante trabalho de pesquisa e divulgação.

Além das exposições e dos vários trabalhos de pesquisa arqueológica (foram adquiridas áreas vizinhas para ampliar o alcance do Instituto), que devem ser retomados agora em julho, o Instituto realiza um importante trabalho de disseminação de conhecimento e memória. A partir de 2016, oferece gratuitamente uma visita guiada por 13 diferentes pontos desse circuito da herança africana nesse núcleo do Valongo, como o Largo da Prainha, o Jardim Suspenso e a casa de infância de Machado de Assis, na rua em frente ao Cais. O principal público-alvo são os educadores e estudantes de escola pública, mas é grande o interesse do público em geral, com longas filas de espera.

“É uma ferida aberta”, afirma Marco Antonio Teobaldo, curador do Instituto, traçando um paralelo entre o terror de nosso passado escravista e a imagem dos restos dos homens e mulheres pretos novos (como eram chamados os recém-chegados da África) que podem ser vistos nas janelas arqueológicas dentro do museu. Em termos de vestígios materiais, muito pouco foi encontrado. Em sua maioria miçangas, contas, pedras ritualísticas e outros objetos do gênero porque eram pessoas absolutamente desmunidas e sem qualquer tipo de tratamento funerário. As cerca de 60 mil ossadas encontradas nos quatro terrenos do Instituto foram desovados, empilhados, incinerados, revirados à terra. “Quando você mostra essa realidade, não tem como romantizar a escravidão. Daí a importância desse lugar”, diz Marco.

“Trato o Valongo como um sintoma”, diz o jornalista e historiador Rogério Pacheco Jordão, que dedicou seu doutorado ao estudo do apagamento ao que o Valongo foi submetido ao longo do tempo, por um claro processo de branqueamento, de esforço por ocultar de uma memória que pulsa e persiste. “O que apagou o Valongo foi o ideal de branqueamento”, diz ele referindo-se ao projeto de reforma e urbanização que buscou transformar o Rio de Janeiro em uma Paris dos trópicos.

O fotógrafo João Maurício Bragança, que também escolheu a região do Valongo como tema de pesquisa em cultura e territorialidade, trabalho que o levou a acompanhar de perto o esforço de resistência e afirmação dessa comunidade ancorada no centro do Rio, registrou em centenas de imagens os esforços de escavação, os circuitos históricos que levavam do cais ao Cemitério dos Pretos Novos ou ao Lazareto, para onde eram levados os escravos que vinham doentes, bem como as tradições preservadas em comunidades como a da Pedra do Sal, onde viviam os recém-libertos. Parte desse registro pode ser visto na exposição virtual O Jardim Secreto do Valongo, na plataforma online artsteps.com.

O que fica evidente nesse confronto entre o descaso e o esforço por trazer à luz os resquícios dessa história de repressão e resistência – lembrado há pouco por Chico Buarque em sua mais nova canção, Que Tal Um Samba? – é que há em jogo uma luta entre forças conflitantes, entre aqueles que pretendem iluminar e aprender com o passado e aqueles que continuam querendo deixá-lo sob esse manto de apagamento,

fortalecendo vícios antigos e recusando-se a aprender com sua própria história, confirmando, na prática, o que dizia a historiadora Emília Viotti Costa: “Um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

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