A artista plástica paulistana Laura Vinci e seu novo objeto de interesse: as plantas. Foto: Jennifer Glass / cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler

Efemeridade e transitoriedade são vocábulos essenciais à poética da artista plástica Laura Vinci. Ambos são traduzidos em trabalhos site specific e instalações, ou ainda intervenções e esculturas de dimensões menos monumentais das que costuma conceber, como as obras cinéticas de sua mais recente mostra, Maquinamata, em cartaz até o dia 8 de agosto na filial carioca da galeria Nara Roesler. Ali, natureza e equipamentos diversos, elementos recorrentes em suas criações, dialogam no que a artista chama de uma busca por “novos paradigmas de como lidar, pensar e se relacionar com o mundo das plantas”.

“Tenho estudado muito sobre elas, é um assunto que vem sendo discutido atualmente por áreas diversas, como a antropologia, a arqueologia e a filosofia. Ao conceber Maquinamata, eu me perguntei se o maquinário poderia nos ajudar a pensar sobre elas, o movimento que fazem, a sensibilidade delas. Se as máquinas, algo que nós humanos criamos, poderiam nos sensibilizar para pensá-las de outra forma”, conta Laura. Entre as obras ali presentes, estão, por exemplo, folhas douradas, rodopiantes, “que surgem como joias, relíquias para o futuro”. Para a artista, a transitoriedade das folhas, que “vão para outro estado quando caem das árvores”, e a própria troca sazonal das plantas refletem algo que igualmente temos. “Também somos sazonais ao longo de nossas vidas”.

Paulistana, Laura Vinci lidava com artes visuais desde “menininha”: aos 15, diz ela, tinha um pequeno ateliê em casa. Ainda na adolescência teve, no entanto, uma formação como musicista, em conservatório. Laura foi instrumentista da Orquestra Jovem do Theatro Municipal, depois fez parte de seu Quinteto de Sopros. Tocava primeiramente flauta transversal, e então se dedicou ao oboé.

“Depois resolvi estudar artes plásticas. Entrei para a faculdade um pouco mais tarde, com 20 anos”, conta Laura, que se formou na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), no fim dos anos 1980. “Terminei os estudos como pintora, mas na década seguinte fiz minha primeira mostra individual já como escultora, em 1991, no Centro Cultural São Paulo, num programa concebido por Sônia Salzstein, para jovens artistas. Foi uma porta de entrada importante para a minha geração”. A exposição, diz a artista, marcou o início oficial de sua carreira, que no ano passado completou 30 anos.

A transição do plano da pintura para a tridimensionalidade, explica Laura, sempre ecoou suas reflexões “sobre nossa existência, o que são nossos corpos e a relação deles com o espaço”. Mas foi no fim dos anos 1990, quando participou da terceira edição do projeto Arte/Cidade, do curador Nelson Brissac Peixoto, que Laura afirma ter tido a grande virada de sua carreira, ao criar um trabalho para um edifício em ruína, de uma fábrica que foi, com o desenvolvimento de São Paulo, aos poucos sendo posta para fora da metrópole.

“Ali, comecei a considerar a arquitetura como estruturante das minhas criações, o que se tornou fundamental na minha produção”, afirma. “A obra também lidava com a questão do tempo, com que venho trabalhando até hoje. E aí já veio a ideia da mudança dos estados da matéria: coloquei 50 toneladas de areia sobre um piso de um dos andares do prédio, fiz um furo na laje, e esta montanha foi escoando para o pavimento de baixo durante o tempo da mostra, que queria falar das condições em que estava a cidade e de sua história”.

A artista diz que aprofundou a ideia de mudanças da matéria em 2002, quando levou ao Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo uma exposição em que experimentou com os estados da água. “Do vapor ao congelamento, a mesma matéria era vista de um jeito diferente, de um andar para o outro”, lembra. Dois anos depois, levou a mesma obra para a galeria Nara Roesler, que passou a representá-la.

Ainda no fim da década de 90, Laura iniciou suas colaborações com o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. Lá, fazia a direção artística, novamente em diálogo com o espaço construído, desta vez a potente arquitetura de Lina Bo Bardi. A primeira peça de que participou foi Cacilda!, sobre a atriz Cacilda Becker (1921-1969). Também trabalhou na adaptação audiovisual que Zé Celso fez de Bacantes e, na década seguinte, participou de uma das montagens de Os Sertões. 

Atuou também como cenógrafa para a companhia mundana, uma “cria” do Oficina, em espetáculos como O Duelo, com direção de Georgette Fadel e Camila Pitanga no elenco, e Máquinas do Mundo. Segundo ela, essa montagem foi uma encenação em que os elementos visuais eram os protagonistas e tinham relação, por sua vez, com seu trabalho Máquina do Mundo, que faz parte do acervo do Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), desde meados dos anos 2000.

Para Laura, no entanto, Cacilda! foi sua incursão mais importante no teatro. “Eu pude realizar algumas passagens que hoje são antológicas, como a cena em que Cacilda tem o derrame cerebral, enquanto fazia Esperando Godot, uma parte central na dramaturgia do Zé Celso”, conta. “Na cena, o sangue da cirurgia que ela viria a fazer caía num plástico transparente, que percorria toda a pista do teatro e terminava num baldezinho, e isso exigia a ajuda, a manipulação dos atores. Foi minha primeira experiência e uma coisa muita intensa, e como resultado estético foi uma peça muito bem-sucedida também”.

Da experiência com o teatro, alguns elementos migraram para o trabalho como artista plástica. As marcações em x, para os atores em cena no palco do Oficina, viraram litogravuras e um objeto de pedra rosso fiorentina, da série Múltiplos, que também estão em Inhotim. O x voltou a aparecer, por sua vez, na exposição Morro Mundo, apresentada em 2018 na Nara Roesler, em São Paulo. Outro exemplo é a peça Duelo, que pedia uma cena de tempestade em que papéis voassem ao abrir uma janela, entre outros elementos cênicos. Posteriormente, a artista criou um trabalho similar, chamado Papéis Avulsos, para a exposição Made By… Feito por Brasileiros, realizada em 2014, no antigo Hospital Matarazzo.

Na linha do tempo de sua carreira, Laura considera que sua trajetória segue um caminho harmonioso em seus desdobramentos. “Embora eu flutue, navegue por vários tipos de materiais e situações físicas, com a sorte de realizar trabalhos em espaços públicos, o fluxo é mais tranquilo”, diz a artista, que pondera, no entanto, que houve uma “virada interessante” em 2014, numa exposição sobre os 70 anos de uma joalheria, com curadoria de Marcelo Dantas, no CCBB do Rio:

“Fiz uma chuva de ouro, de papéis douradinhos”, lembra. “Criei algo como uma bateia gigante, botei na abóboda e havia um ventilador que de vez em quando soprava essas folhinhas. Elas caíam pelos 15 metros do vão do hall e isso causava uma comoção que eu não havia imaginado. As pessoas simplesmente se jogavam nelas, gritavam, aconteceu uma entrega muito linda do público. Isso modificou a relação de meu trabalho com o público, com o estímulo a uma interação, numa emoção em que o corpo ia antes de pensar. O trabalho pedia uma reação muito espontânea. Acho que tem um pouco a ver com minha experiência no teatro. Em No Ar, que fiz no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (Mube), em 2017, também teve esta característica de a obra chamar o corpo do espectador”.

Nas obras de Laura Vinci, outro elemento recorrente são os dispositivos diversos. “Quase sempre existe um equipamento em minhas criações, às vezes não estão aparentes, mas nos bastidores. Em Estados, no CCBB, tinha todo um maquinário sofisticado, para refrigeração de supermercados. Acho que isso vem de um desejo de, para observar a natureza e os acontecimentos naturais, usar o artifício das máquinas, que conseguem repetir estes movimentos”, explica. “Já em Máquina do Mundo é diferente, o trabalho traz um equipamento da alta indústria, da mineração. Tinha a lógica da máquina no conceito da obra, e ela estava lá, explícita”.

A instalação Máquina do Mundo (2005), inspirada em trecho de poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, e parte do acervo do Instituto Inhotim

A música, um interesse iniciado na adolescência, continua ainda hoje a informar a poética da artista, assim como as letras – Máquina do Mundo, vale lembrar, teve como inspiração um trecho do poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. Casada com o escritor e músico José Miguel Wisnik, “o assunto literatura está presente em casa o tempo todo”, segundo ela. “Mas sou leitora desde sempre, sobretudo de autores brasileiros. A literatura é uma companheira e uma disparadora de reflexão e estímulos para a criação”, afirma. Em sua cabeceira, no momento, estão Revolução das Plantas, do botanista italiano Stefano Mancuso, e A Trama da Vida, do biólogo inglês Merlin Sheldrake.

A artista considera que seu trabalho, de modo geral, tem uma característica não muito mercadológica. São estruturas muito grandes, do ponto de vista comercial “muito inviáveis” por natureza. “Tanto que sempre fiz mais exposições em espaços públicos, onde é possível apresentá-las. Tenho também uma produção mais viável para compra, em paralelo, mas vou muito no meu ritmo, não acompanho o do mercado”, reflete.

A propósito do mercado, Laura comemora o fato de que ele e as instituições tenham se fortalecido no Brasil nos últimos anos. “Há um ambiente que não havia quando comecei. Hoje um jovem artista consegue viver de seu trabalho, se ele consegue se inserir no mercado. É algo muito positivo”, diz a artista que, no entanto, pondera a necessidade de se “estar sempre com os olhos bem abertos, para não perder a oportunidade de se fazer uma contestação imediata, quando necessário”, como Cildo Meirelles recentemente fez, ao retirar as obras cedidas à coletiva Histórias Brasileiras, no Masp, após a recusa da instituição em incluir um conjunto de fotos relacionadas ao MST (Movimento Sem Terra).

Segundo Laura, estamos vivendo uma “verdadeira tragédia” nestes anos de governo Bolsonaro. E as instituições também vêm sofrendo com isso, por exemplo, com a perseguição à Lei Rouanet, que afeta a realização de exposições. Isso, no entanto, não deve ser obstáculo ou salvo-conduto à crítica.

“Vai ser necessário muito tempo para reconstruir, é verdade. É muito violento o que estamos passando. Mas acho que o artista precisa se posicionar e confrontar as contradições das instituições. Isso faz parte do amadurecimento da arte no País como um todo. Este governo deixará um legado negativo, que vai durar ainda. Ao mesmo tempo, a cultura brasileira tem uma potência enorme, e continuaremos lutando contra isso, com nossas ferramentas”, conclui.

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