O maestro Lyrio Panicali em detalhe da foto impressa na contracapa do LP 'Nova Dimensão', Foto: Reprodução / Odeon

Especialmente àqueles que insistem no reducionismo do desinformado epíteto “música de apartamento” ou “música elitista”, falaremos hoje de um disco essencial para compreender que a bossa nova foi muito além do banquinho e violão. Trata-se de um cinquentão moderníssimo, Nova Dimensão, álbum do maestro Lyrio Panicali e sua orquestra, lançado, em 1964, pela Odeon.

De ascendência italiana, nascido há exatos 108 anos (sim, hoje seria aniversário dele) em Queluz, na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro, Panicali iniciou sua formação de regente em 1922, aos 16 anos de idade, no Instituto Nacional de Música. Aos 26, como maestro e pianista, ingressou na Companhia Negra de Revistas, trupe liderada pelo ator negro Wladimiro di Roma, que marcou época no Teatro de Revista. Discorrer sobre o que depois aconteceu a Lyrio Panicali, como maestro e como compositor, demandaria um sem número de parágrafos. Vamos aqui, então, nos atentar à importância capital de Nova Dimensão.

A despeito do espectro sombrio imposto pelo golpe civil-militar de 31 de março, o ano de 1964 foi dos mais luminares para a música popular brasileira, tanto na seara da canção quanto nas produções instrumentais. O principal agente propagador desse ambiente fértil, claro, era a recém-criada bossa nova. A partir do canto sussurrado de João Gilberto e do horizonte de infinitas possibilidades harmônicas impostas pelo violão divisor do baiano, a geração impactada pela bossa partiu em busca de outras grandes experimentações.

Capa do LP “Nova Dimensão”. Foto: Reprodução / Odeon

Não por acaso, muitos dos álbuns lançados depois de Chega de Saudade (1959) expressavam, desde o título, um singelo adeus ao saudosismo musical e mantinham olhos e ouvidos fixos no para-brisa do futuro. Caso de Novas Estruturas, de Luiz Carlos Vinhas, Flora é M.P.M (sigla para Música Popular Moderna), de Flora Purim, A Nova Dimensão do Samba, de Wilson Simonal (que contém sete arranjos de Panicali), Samba Esquema Novo, de Jorge Ben, Samba Pra Frente, do Samba Trio e A Hora e a Vez da M.P.M., do Rio 65 Trio de Dom Salvador.

Quando lançou o álbum Nova Dimensão, partindo das direções exploradas por combos inaugurais do samba-jazz (ou bossa-jazz), como o Tamba Trio, o Bossa Três, o Sexteto de Jazz Moderno e o Sambalanço Trio, outra experimentação no formato big-band, com repertório bossa nova e de grande relevo, já havia sido feita por Panicali no álbum A Revolução, da Orquestra Brasil Moderno (Odeon, 1963).

Na ocasião, o compositor Chico Feitosa não poupou elogios ao maestro: “De um gênio muito se fala, muito se elogia. E Lyrio Panicali é um gênio, que pouco se fala, que pouco se elogia. Um homem que transmite poesia, beleza e técnica dentro de suas criações harmônicas. Só posso dizer que tudo nasce num som diferente dos acordes deste gênio que é Lyrio Panicali”, referendou Feitosa na contracapa do LP.

Enfatizando o frescor do “irresistível impulso modernista” de Panicali – frase expressa por Gilberto Miranda no verso de Nova Dimensão – o repertório do álbum trouxe releituras instrumentais extraídas da nata do cancioneiro bossanovista. Estão nele, entre os 12 temas, Consolação, de Badden Powell e Vinicius de Moraes, Batida Diferente, de Maurício Einhorn e Durval Ferreira, Balanço Zona Sul, de Tito Madi, Lobo Bobo, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, e Deus Brasileiro, dos irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle.

Há quem insista também na tola teoria de que a bossa nova teve vida efêmera e que ela foi capitulada por consequência dos adventos da jovem guarda e do tropicalismo. Provando o contrário, álbuns como A Revolução e Nova Dimensão fizeram escola e resultaram em obras lançadas, nos anos seguintes, sob a batuta de outros grandes regentes como o primoroso O Som Espetacular da Orquestra de Carlos Piper (Continental, 1965), do regente argentino, e álbuns que se apropriavam de sucessos radiofônicos, exemplo de Big Parada, do trompetista Formiga e Sua Orquestra (Elenco, 1970), e Explosivo! (London, 1970), do maestro Nelsinho.

O maestro Lyrio Panicali em foto de arquivo pessoal extraída da página oficial mantida no Facebook por sua sobrinha, Rosa Maria Panicali.

Por essas e outras, não somente hoje, no dia de seu aniversário, faz-se necessário preservar e reverenciar a memória desse maestro fundamental chamado Lyrio Panicali. Sobre ele, um certo Tom Jobim deu o seguinte depoimento, em 1963:  “Este movimento atual que se vê na música popular brasileira deve muito a Lyrio Panicali. Não é de hoje que o meu querido maestro vem lutando pela evolução de nossa música popular. Entre seus muitos fãs havia um que se chamava Heitor Villa-Lobos. Lyrio põe muito amor em tudo que faz e por isso mesmo é muito procurado. Sempre foi um boa praça e me recebeu de braços abertos quando bati a sua porta em busca de ensinamentos. E, talvez por dar muito de si aos outros, recebeu esta graça: alma aberta ao que é novo e o talento necessário para ser Lyrio Panicali”

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 26.6.2014

Ouça o álbum Nova Dimensão

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