"Desabamento do Céu/ Fim do Mundo" [Série Sonhos Yanomami], de Claudia Andujar. Foto: Divulgação.

“Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.”

                               Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, 2019.

Essa epígrafe de Ailton Krenak, retirada de uma fala sua publicada em 2019, como que indica uma janela, desenha uma brecha no confinamento a que fomos obrigados a vivenciar em 2020, para tentar superar a crise produzida pela pandemia da covid-19. Lendo a passagem, pensamos: vamos sair do espaço confinado com a potência de nossa mente, expandindo-o para a dimensão do cosmos onde voaremos em nossos “paraquedas coloridos”! Essa formulação, que permite se estabelecer uma ponte que vai do terrível ao maravilhoso, rompe com a clausura, rachando as paredes de nossos “claustros”. Podemos dizer que ela é autoperformática, na medida em que Krenak, ao formular a sua tese, já está produzindo em nossas mentes aberturas, expansões para além de nosso confinamento. Mas não se trata, é claro, apenas do confinamento produzido pela pandemia de Sars-CoV-2. Krenak formulou essa ideia antes da pandemia e a partir de uma poderosa reflexão sobre os caminhos e acidentes da história da humanidade. O espaço confinado a que ele se refere nessa passagem é o confinamento dentro da razão instrumental de origem humanista e Iluminista. Essa razão elegeu um modo de progresso que entroniza uma técnica destruidora que se alimenta da terra e das pessoas e está nos levando ao “fim do mundo” a que se refere o título de seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo.

A razão instrumental nos lançou em uma aporia, em um impasse, numa incerteza profunda que nos paralisa. Fechou as portas e estamos sem saída. Aporia vem do grego áporos e deriva, conforme o dicionário Houaiss, “de a- ‘privação, negação’ […], + grego póros, ou ‘passagem’”. Em meio a essa clausura produzida por esse modelo de desenvolvimento e que agora gerou uma gigantesca e avassaladora pandemia, as palavras de Krenak, um líder indígena que vem de uma cultura que vive há milênios nas Américas sem nunca ter chegado à situação semelhante, sugerem a necessidade de uma pausa para reflexão: vamos construir saídas criativas, façamos os nossos “paraquedas coloridos”.

Krenak descreve essa aporia vivida pela sociedade contemporânea, mas ao mesmo tempo se separa dessa sociedade, mostra que vem de outra tradição, de uma história multicentenária de sobrevivência:

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.[1]

Ao invés de cair na posição melancólica, na prostração paralisante, Krenak nos fala de um outro registro de pensamento, para além de nossos parâmetros cartesianos, que veem no raciocínio lógico o ápice do saber. E motivos para a melancolia é que não faltam, quando observamos a história da destruição e da violência contra os indígenas no Brasil. Claude Lévi-Strauss, no livro Saudades do Brasil, apresentou suscintamente essa história como a de um fantástico acúmulo de barbáries. É a extensão do massacre indígena que o antropólogo destacou nessa obra. Em fazendo isto, ele apontou ao mesmo tempo para a grandeza das culturas indígenas que vivem em terras brasileiras, revertendo a hierarquia tradicionalmente atribuída aos povos originários nas Américas: a “Amazônia”, ele escreve, “poderia ser o berço de onde saíram as civilizações andinas.”[2] Lévi-Strauss surge como uma testemunha de populações que sobreviveram a “um monstruoso genocídio” que se estende desde a chegada dos europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes desse cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios] o descobrimento e as invasões que se seguiram.”[3] Calcula-se que entre 5 a 9 milhões de indígenas foram assassinados graças à empresa colonial, seja por meio de epidemias, de massacres ou da escravização. Trata-se de um dos maiores genocídios da história da humanidade. Essa empresa colonial está ainda em curso e recuperou fôlego em 2018.

Krenak, partindo dessa gigantesca e pesada herança de genocídios, etnocídios e de lutas pela sobrevivência, dá uma virada e propõe a resistência pela imaginação. Ela é uma poderosa “esburacadora” de brechas, que permite o abrir de caminhos, de inúmeros “poros”, que facultam sairmos de nossa “aporia”. Esse comutador que nos lançaria para fora do buraco em que nos encontramos tem como uma de suas faces os sonhos:

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.[4]

Esses sonhos são locais privilegiados que descortinam um novo olhar sobre nossas vidas. Além dessa abertura que permite estruturarmos uma outra leitura do real e construir outras subjetividades, os sonhos são em si mesmo locais de moradia sem paredes. Krenak nos fala: “De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho.”[5] Habitar os sonhos, viver para além “dessa terra dura”, na suavidade multiforme dos sonhos, abrir poros entre o mundo onírico e nossa vigília, quebrar as paredes da “instituição total” e totalitária em que o sistema converte e reduz a terra inteira. Antes que a terra toda fique dura e seca, Krenak propõe, com toda a leveza do mundo, sem gritos revolucionários, sem clamores a derramamento de sangue, que reconheçamos nos sonhos um lugar de expansão de nossas vidas, um espaço para sairmos da aporia.

Durante o mês de abril, ou seja, poucos meses após o início do surto da pandemia de covid19, Krenak publicou outras falas em seu pequeno opúsculo O amanhã não está à venda. Novamente ele volta ao tema da falta de saída, agora radicalizada com a covid19, para aqueles que apostam no modelo de humanidade consagrado pela tradição Humanista, Iluminista e pela entronização da técnica como agente de dominação e destruição da natureza. A Modernidade na qual confluíram essas tendências, sempre foi marcada tanto por uma biopolítica que reduz grandes partes da humanidade à categoria de sub-humanos, pelo preconceito étnico-racial, por políticas de escravidão e de genocídio e, por fim, foi caracterizada por uma relação de espoliação com a natureza. Por outro lado, os povos ameríndios, como escreve Krenak apresentando a sua cosmovisão, não percebem “que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza.”[6] Assim, eles abandonaram o binarismo que marca ao menos desde a visão de mundo clássica, nascida na Grécia, a dualidade que reproduz a relação de objetificação com essa natureza dominada pela “cultura”. O antropocentrismo e o especismo são parte central do projeto que culminou no Antropoceno, ou seja, a era na qual a humanidade molda o planeta e constrói as bases para a eliminação de sua possibilidade de sobrevida. Não podemos esquecer que esta pandemia é resultado da destruição da biodiversidade. As “zoonoses emergentes” são fruto da invasão desses habitats ricos em biodiversidade. A biodiversidade é ao mesmo tempo o depositário de nosso futuro e a sua preservação a garantia de que essas zoonoses não se repetirão.[7] Nas Américas, as populações ameríndias são as grandes responsáveis pela conservação dos territórios da biodiversidade. As populações originárias no Brasil são guardiãs de um dos maiores patrimônios de biodiversidade do mundo, como também, como lemos acima com Krenak, elas detêm um dos mais ricos patrimônios culturais, com suas 250 etnias e cerca de 150 línguas e dialetos. Assim, Krenak aponta para o fato de que esse vírus coloca em xeque esse modelo de relação destruidora com a natureza:

Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise. […]

Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.[8]

No livro, Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak ironizava um certo alarmismo acerca do “fim do mundo” e lembrava que os povos indígenas convivem com mais de cinco séculos de epidemias introduzidas pelos “brancos”. Ele apresenta um modo de vida que escapa às nossas visões de mundo judaico-cristãs (marxistas ou não) que apostam em um “fim do mundo”, em uma revolução, em uma redenção pontual. A sabedoria cultivada nos sonhos e, nas danças e no diálogo com os espíritos do passado ensina que a “revolução” está na capacidade de frearmos e sairmos do caminho aporético. Devemos aprender a perfurar nossos muros, a cavar pontes e túneis, encher de poros uma sociedade e as mentes fechadas e programadas para um projeto em si entrópico, posto que aposta na exploração infinita dos recursos naturais. Aposta também no fim da pluralidade da biodiversidade e das formas de vida e cultura, as verdadeiras bases da vida na Terra. Em seu O amanhã não está à venda Krenak justamente vai destacar a importância de não lutarmos, agora, por uma “volta à normalidade”, ou seja, ao mesmo caminho que vínhamos trilhando e que produziu essa pandemia.

Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. […] Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.[9]

Outra grande voz vinda do mundo ameríndio que tem trazido uma série de preciosos e urgentes ensinamentos é a de Davi Kopenawa. Em seu livro A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami (coescrito com o antropólogo Bruce Albert) ele descreve em centenas de páginas o martirológio dos yanomamis provocado pelos contatos com os brancos, sejam militares em missões de demarcação das fronteiras, ou operários construindo estradas, mas sobretudo garimpeiros em busca dos minérios sob a terra yanomami. Kopenawa tem uma clareza total com relação ao fato de que essas explorações dos minérios em si produzem epidemias. Ou seja, não só o contato com esses brancos traz as doenças, mas a destruição da floresta, dos rios e do solo produz epidemias.

As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama [o deus criador] conhecia. Ele porém decidiu, no começo, escondê-los sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo Hutukara [nome xamânico do antigo céu] caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós. Estão enganados.[10]

Segundo narra Davi Kopenawa, recordando o saber que lhe foi passado em conversas com os antigos xamãs, em sonhos e nos transes xamânicos, os metais foram criados não por Omama, mas sim por seu malévolo irmão Yoasi, o deus que também introduziu a morte. Omama enterrou os metais para proteger-nos e debaixo da terra eles devem ficar. Esses metais, ademais, seguram os esteios que sustentam o céu, eles mantém “a terra no seu lugar”. Ou seja, retirar esses metais do solo, destruir a floresta que os isola, implica em liberar epidemias fatais:

Agora sabemos de onde provém essa fumaça maléfica. É a fumaça do metal, que também chamamos de fumaça dos minérios. São todas a mesma fumaça de epidemias xawara [11] que é nossa verdadeira inimiga. Omama enterrou os minérios para que ficassem debaixo da terra e não pudessem nunca nos contaminar. Foi uma decisão sábia e nenhum de nós [yanomami] jamais teve a ideia de cavar o solo para tirá-los da escuridão! […] O sopro vital dos habitantes da floresta é frágil diante dessas fumaças xawara. […] Quando essas fumaças sugiram, não tiveram forças para se defender. Todos arderam em febre e logo ficaram como fantasmas. Faleceram rapidamente, em grande número, como peixes na pesca com timbó. Foi assim que os primeiros brancos fizeram desaparecer quase todos os nossos antigos.[12]

Kopenawa afirma também que apesar de nossas cidades estarem infestadas dessa fumaça mortal, não desistimos, continuamos destruindo a floresta, criando cidades gigantescas. Nosso pensamento, ele afirma, “está todo fechado”, em uma expressão que lembra a imagem do “lugar confinado” da fala de Krenak que lemos na abertura deste texto. Kopenawa estabelece uma relação entre essas epidemias e as mercadorias trazidas pelos brancos: “a doença e a morte golpeiam os habitantes da floresta assim que estes começaram a desejar as mercadorias. […] De modo que, para nós, as mercadorias têm valor de epidemia xawara.”[13] Esse raciocínio é fundamental e parte central da contra-antropologia de Kopenawa: os brancos, que ele denomina de “povo da mercadoria”, são também de certo modo o povo que traz e produz as epidemias, com sua sanha de arrancar os metais, que seguram os esteios do céu sobre nossas cabeças, e gana de produzir mercadorias, com o que esgotam os metais da terra. “Hoje, os seres maléficos xawarari não param de aumentar”, ele escreve de modo quase profético, mas que na verdade explicita simplesmente a percepção dos povos que vivem nas florestas e são a vítimas mais fáceis dessas epidemias há séculos. E ele continua: “Mas as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos espíritos! Eles só prestam atenção no seu próprio discurso e nunca se dão conta de que é a mesma fumaça de epidemia que envenena e devora suas próprias crianças.”[14] Assim como Krenak fala da necessidade de despertarmos, antes que seja tarde demais, para o que está acontecendo com a Terra[15], aqui Davi Kopenawa fala dessa necessidade de ouvirmos os clamores da Terra. Temos que sair de nossa “zona de conforto” que se tornou uma “zona de desconforto”, pois estamos sim cavando o chão sob os nossos próprios pés.

Foto de Claudia Andujar da série “Catrimani”. Foto: Divulgação.

O Brasil da pandemia de covid-19 em abril de 2020 é também um país assolado pela praga de uma política fascista de caráter abertamente genocida. É importante retomar uma fala do atual presidente feita em 29/06/2017 em Porto Alegre: “Minha especialidade é matar”. Naquela ocasião ele também recordou que o maior feito de sua atividade como deputado teria sido a aprovação da “pílula do câncer” (a fosfoetanolamina), um embuste, o que não deixa de recordar a sua atual insistência na suposta capacidade milagrosa da cloroquina contra a covid-19. Sua tanatopolítica contra as populações indígenas, quilombolas, negras, LGBTQ+, sua misoginia e ataque às liberdades fundamentais, fazem com que a pandemia surja como um aliado da política de morte desse governo, sendo que já está claro que as populações mais pobres e desprotegidas pelo sistema de saúde serão as mais vitimadas. Agora, não só tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireros aos territórios indígenas, levando a pandemia às populações originárias, como o desmatamento da Amazônia tem se intensificado. Segundo o Instituto Socioambiental, “o desmatamento no primeiro trimestre deste ano [2020] foi 51% maior que o mesmo período do ano passado.”[16] Essas árvores derrubadas são potencial combustível para queimadas que provavelmente serão ainda mais avassaladoras do que as de 2019. Como assumido cavaleiro da morte esse presidente se recusa a ver de frente a pandemia, ele a nega, como nega as questões socioambientais ou a destruição e violência associadas ao período da ditadura de 1964-1985, que ele prefere enxergar como uma fase heroica e modelar. Seu negacionismo de raiz se associa a uma incapacidade patológica de empatia e de solidariedade. O “outro”, nesta visão de mundo, merece apenas o seu apagamento. O monolinguismo fundamentalista nega a pluralidade e a diferença. O “outricídio” se dá tanto em termos culturais, extinguindo tentativamente toda produção cultural e destruindo etnias, sobretudo as culturas indígenas e quilombolas, seus alvos prediletos, o que indica também a sua covardia intrínseca. Os povos da megadiversidade, indígenas e quilombolas, são os antípodas do modelo de pensamento fascista “outricida”. Necropolítica e ultraliberalismo, nesse sentido, andam de mãos dadas, vide o desmonte dos direitos trabalhistas que está sendo realizado desde o governo Temer, que continuou em 2019 e agora, durante a pandemia, procurando-se extirpar os poucos direitos que sobraram, reduzindo o trabalhador a uma situação de total desamparo. O ultraliberalismo é apenas a expressão contemporânea da empresa colonial que sempre quis reduzir a terra à commodity e o trabalhador à escravo.

A pandemia de corona além de tornar a morte onipresente, obriga-nos a uma reclusão que impede que enterremos nossos parentes e amigos. O próprio luto fica barrado. Trata-se de uma morte que vem com a morte da própria morte, o que destrói nossos quadros de referência e barra a simbolização. Para piorar a situação no Brasil, acrescenta-se a isso tudo um governo que assume a morte como seu mote. Aproveita-se o período conturbado e caótico, sem um ministro que lidere o combate à doença (uma vez que o ex ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido em plena pandemia e substituído por um administrador empenhado em minimizar a gravidade da crise) para realizar um desmonte do país. Por exemplo, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, assinou recentemente (06/04/2020) um despacho que anistia terras desmatadas até 2008 em Áreas de Conservação Permanente da Mata Atlântica, facultando o uso “produtivo” desses locais. Essa autorização da destruição ratifica o ecocídio praticado freneticamente. Tudo que propicie a máxima exploração dos trabalhadores e da natureza é validado pelo governo Bolsonaro. No dia 23 de abril, Bolsonaro baixou uma portaria que autoriza civis a adquirir 550 unidades de munição por mês. Ao invés do combate à pandemia, o incentivo aos armamentos, a construção de um exército de milicianos com potencial inimaginável de morte e destruição.

Existe um descompasso evidente entre a radicalidade dessa política da destruição e da morte e, por outro lado, o movimento de cuidado e de proteção da população, exigido em um momento de pandemia. O presidente, nas poucas vezes que se dignou a falar do tema, adere, como mencionei, a soluções mágicas, como medicamentos comprovadamente pouco eficazes e até perigosos para o combate ao covid-19. Outro ponto que mobiliza este governo, que depois de demitir o Ministro da Justiça, está colocando a Polícia Federal a serviço da família do presidente e de seus novos aliados no chamado Centrão, é a expansão do controle da população, por meio de acesso a dados dos celulares e computadores, como a sua localização. O panóptico digital alimenta um presidente ávido de informações da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e da PF.

Nesse contexto, a saída proposta por Krenak e sustentada pelas palavras de Kopenawa, que temos que nos abrir para as demandas da Terra, sem dúvida são difíceis de se traduzirem em prática. Mas o império da morte, com seus dois cavaleiros do apocalipse Bolsonaro e Corona servindo de escudeiros momentâneos, não há de triunfar tão rapidamente ou sem resistência. A própria publicação do texto de Krenak, composto a partir de 3 falas ministradas em abril deste ano, é uma prova disso. Ele mesmo nos lança seus paraquedas coloridos, indicando a necessidade de revermos nossa ideia de “normalidade” diante da crise da pandemia e do desgoverno Bolsonaro. Krenak nos faz lembrar também de outros pensadores que, no século XX, vivendo situações limite, aporias e encurralamentos, quando a morte também se estendia sob boa parte do mundo. É o caso de Walter Benjamin, que foi vítima do nazifascismo e que também refletiu profundamente sobre a necessidade de frearmos o modelo de sociedade que associou o capitalismo a um modelo destruidor de técnica.[17] Benjamin resumiu a sua crítica ao progresso no modelo industrializante europeu com essa forte imagem: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o acionar do freio de emergência pela humanidade que viaja neste trem.”[18] Benjamin, desde seu importante ensaio sobre o surrealismo, de 1929, também esteve ocupado com um projeto que nos lembra muito a apologia e a centralidade dos sonhos e do transe xamânico nas culturas ameríndias: “Mobilizar para a revolução as forças da embriaguez”.[19] Evidentemente, a ideia de “revolução”, como vimos, não é parte do arcabouço ameríndio e sim um fruto de nosso pensamento judaico-cristão (e a seu modo marxista no caso de Benjamin). Mas isso não implica que não possamos encontrar afinidades aqui, pois Benjamin era um pensador do “tempo do agora” (Jetztzeit), que valorizava a ideia de curtos-circuitos temporais na produção de mudanças vitais. O mesmo se dá no xamanismo e no mundo dos sonhos, onde tampouco existe a fronteira entre passado, presente e futuro.

Para Benjamin, essa conquista das forças da embriaguez para a revolução estava associada também ao que ele denominou de “organização do pessimismo”.[20] Nada mais atual. A tarefa que ele se colocava era a de alterar radicalmente a relação entre a política e a moral a partir dessa mobilização das forças da embriaguez. Benjamin adere ao que ele acredita ser a alternativa dada pelos surrealistas. Nessa visão, em oposição ao otimismo burguês da socialdemocracia e ao “arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um pessimismo de princípio como guia para a mudança. E sobretudo: trata-se de uma clara consciência de que o único “avanço” alcançável no atual modelo capitalista (seja nos anos 1930, seja nos 2020) é o da técnica que leva à destruição. Também essa ideia é luminar hoje, nesses tempos de nuvens negras, rios de dejeto, de oceanos de piche, destruição de florestas e de pandemias. Para organizar o pessimismo seria necessário “simplesmente extirpar a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem.”[21] Ou seja, tratava-se e trata-se, ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para o moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene que eliminaria os “esquerdistas”, a mais clara expressão do fascismo. A luta política se dá como uma batalha de imagens e pensadores como Kopenawa e Krenak, assim como artistas, poetas, trabalhadores e intelectuais, produzem a cada dia novas imagens que se opõem à pretensa verdade monológica que os donos do poder procuram impor. Essas outras imagens mobilizam nossas paixões e sustentam novas e robustas subjetividades, formam outras coletividades e amparam a resistência.

Benjamin também se dedicou à “embriaguez” do haxixe, que ele consumiu para estudar os seus efeitos na nossa mente, e foi alguém que procurou trazer para sua teoria a força do sonho. Como ele anotou no seu livro sobre as passagens de Paris: “No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu deposito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras.”[22] Saber sentir e perceber esses fragmentos de utopia dispersos na superfície da sociedade e na sua história é um primeiro passo para se iniciar a sua concretização. Benjamin, em suma, também nos presenteou com uma série de paraquedas coloridos para enfrentarmos os tempos sombrios e aprendermos a romper com nossos muros e paredes, saltar com paraquedas coloridos e a cair de modo mais suave.

Por fim, concluo essas reflexões, desencadeadas pelo isolamento e pela pandemia da covid-19 que agora se espalha por todo o mundo e já vitimou mais de 200 mil pessoas (25/04/2020), sendo 4 mil no Brasil, recordando um poeta, portanto um outro criador de paraquedas, que sobreviveu a campos de concentração nazistas onde perdeu seus pais. Refiro-me a Paul Celan. Ele possui um poema que tenho relido nestes dias. Seu título é “Corona”. “Corona” (coroa) em italiano é também o nome da indicação que se coloca sobre uma nota para aumentar o seu valor e que em português se denomina suspensão ou fermata. Esta última expressão também vem do italiano e significa “parada”. Ela pode indicar tanto a extensão de uma nota como de uma parada, do silêncio. O poema de Celan “Corona” trata do tempo e do dar-se do próprio tempo. Na primeira estrofe lemos, na tradução de Mauricio Cardozo:

O outono come suas folhas na minha mão: somos amigos.
Descascamos das nozes a hora e a ensinamos a ir:
a hora volta de novo pra casca.

Esta “hora”, ou “tempo” (“Zeit”), que volta à casca é um tempo tanto do ciclo da natureza, quanto o tempo das relações humanas. O poema, como acontece muito na poética de Celan, dirige-se a um “tu” e fala de um “nós”, de um encontro. Trata-se da construção de uma epifania, marcada pelo encontro de duas pessoas, que rompe a continuidade temporal, “é domingo”, instaurando tanto o esquecimento (papoula) quanto a memória. O poema continua:

No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
na boca, a verdade.

Meu olho desce até o sexo dos amantes:
nós nos vemos,
nós nos dizemos coisas obscuras,
nós nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o mar no sangue que raia da lua.

Nós juntos na janela, eles nos olham da rua:
tá na hora de saber!
Tá na hora de a pedra se acostumar a florir,
de a inquietude fazer bater um coração.
Tá na hora de estar na hora.
Tá na hora.

Esse tempo instaurado, o tempo do tempo, pode ser lido como um renascimento a partir da onipresença da morte. Dos corpos que se encontram, renasce a vida. As pedras na poética de Celan quase sempre remetem à morte e à necessidade de se fazer o luto. Depois da morte, no reencontro com o “outro”, a vida volta a fluir: “Tá na hora de a pedra se acostumar a florir”. O que mais me interessa em “Corona” no nosso contexto é essa sua estrofe final. A imagem desse casal à janela e de um saber que subitamente é instaurado e rompe com a linearidade do tempo. Ele rompe também com o “lugar confinado”, para retomarmos a epígrafe de Krenak. A pedra que vai florir é associada ao coração que bate. O tempo que nasce é um tempo puro, sem passado ou futuro, simples instância do devir, do dar-se, para além do apocalipse e da redenção. Sem o medo do fim e sem a esperança vã da revolução messiânica. “A hora volta de novo pra casca”, “die Zeit kehrt zurück in die Schale”. “Tá na hora de estar na hora”, “Es ist Zeit, daß es Zeit wird”: já é tempo que o tempo se concretize.

Não seria essa temporalidade irmã daquela que permite que construamos nossos paraquedas coloridos? Caminhemos da corona para a fermata, em direção ao tempo da suspensão. O tempo reinstaurado abre espaço para que despenquemos, em rede, mediatizados e unidos pelos nossos poros eletrônicos, mas não só, “em paraquedas coloridos”, rompendo com as aporias. Não seria essa consciência da “fermata”, da suspensão do tempo, o primeiro passo para que agarremos no freio de emergência de que nos fala Benjamin? Já é mais do que tempo.

* Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de, entre outras obras, “Ler o Livro do Mundo” (Iluminuras,1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), “Adorno” (PubliFolha, 2003), “O Local da Diferença” (Editora 34, 2005 vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006), “Para uma crítica da compaixão” (Lumme Editor, 2009) e “A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno” (Editora Civilização Brasileira, 2009). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra e México.

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[1] Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das letras, 2019, p. 31.

[2] Claude Lévi-Strauss, Saudades do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 13.

[3] Id., p. 16.

[4] Krenak, 2019, cit., p. 52.

[5] Id., p. 65.

[6] Ailton Krenak, O amanhã não está à venda, São Paulo: Companhia das Letras, 2020, versão Kindle.

[7] Janes Rocha, “Biodiversidade é a chave para prever e evitar novas pandemias”, In: Jornal da Ciência, 16/04/2020.

[8] Krenak, 2020, cit.

[9] Krenak, 2020, cit.

[10] Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, São Paulo: Companhia da Letras, 2015, p. 357.

[11] Mais adiante Kopenawa define: “O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne.” Id., p. 366.

[12] Id., p. 363-64.

[13] Id., p. 368.

[14] Id., p. 370.

[15] “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.” Krenak, 2019, cit., p. 45.

[16] “Desmatamento na Amazônia cresce e pode gerar novas queimadas”, https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/desmatamento-na-amazonia-cresce-e-pode-gerar-novas-queimadas, visitada em 25/04/2020.

[17] Remeto sobre essa teoria da técnica em Benjamin ao meu artigo recente: “Filosofia da Técnica: Arte como um novo campo de ação lúdico (Spielraum) em Benjamin e Flusser”, in: ARTEFILOSOFIA, No. 26, julho de 2019, p. 52-85. (Também disponível online)

[18] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Vol. II: Essays, Vorträge, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980, p. 1232.

[19] Benjamin, Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 33.

[20] Id., p. 34.

[21] Id., p. 34.

[22] Benjamin, Passagens, org. Willi Bolle e Olgária Matos, tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão, São Paulo/Belo Horizonte:Ed.UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 41.

 

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