OPAVIVARÁ!, "Rede Social". Foto: Edson Kumasaka/ Divulgação

A mostra Vaivém, como delimitação de um espaço de representação, expõe um dos símbolos recorrentes da cultura indígena, a rede de dormir, ponto enigmático da identidade brasileira. A mostra aponta para o passado de raízes primordiais e apresenta as redes nas artes e na cultura visual no Brasil associada ao ócio, preguiça, lugar de descanso e mortalha. Os olhares histórico e político se cruzam neste momento de difíceis reflexões sobre o universo indígena e explodem de energias reprimidas. Os discursos e as preocupações que envolvem as grandes exposições sobre as raízes brasileiras costumam passar ao largo de objetos simples e prosaicos como este. Vaivém torna obsoleta as convenções de tempo, espaço, forma e cor, regidas pelo cânone artístico e pressupõe o corpo como fluxo de energias e percepção das formas. A coletiva se abre para experimentações, performances, pinturas, esculturas, instalações, fotografias, vídeos, documentos, HQs, divididos em núcleos temáticos e históricos. O conjunto materializa-se como forma de enunciação e reflexão sobre a arte a partir de um foco que vai do onírico ao cruel, com escravos transportando seu senhor em redes. 

Os espaços expositivos têm o poder de desmanchar o pensamento clássico sobre objetos primitivos levando o espectador a movimentos de entrega, desde as relações com as cores à metamorfose com o ambiente. As redes de dormir são obras sintéticas de linhas que regem a anatomia, a forma, com a participação do homem. As cerca de 350 peças de 141 artistas de todo o Brasil se espalham pelo CCBB de São Paulo. A rigor, elas não estão no espaço, são os espaços conformados pelo volume, peso e movimento. A mostra é um convite ao voyeurismo, com cada peça embalando uma história de acordo com sua época, valor local, regional ou universal. Algumas composições materiais parecem livrar-se dos limites prefixados de circulação e valor.

 A antropologia, muito mais do que a arte e a literatura, discute, em campos diferentes, a nova visão da identidade. As obras aqui reunidas criam um locus de reflexão em torno da complexa relação da arte com os problemas éticos da sociedade. O elenco reúne desde artistas indígenas a nomes estrelados da história da arte como Tarsila do Amaral, Tunga, Claudia Andujar, Djanira, Bispo do Rosário, Ernesto Neto, Luiz Braga, Bené Fonteles, Frida Baranek, entre outros. No conjunto, de uma forma ou de outra, fazem uma “ópera” fragmentada sobre o Brasil colonial, com desejos contraditórios e pertencimentos identitários diferentes. Adquirem um simbolismo territorial, desde as tribos indígenas às populações ribeirinhas, aos barcos fluviais apinhados de gente em redes, às metrópoles de todo o País. Redes de dormir são imagens do cotidiano, ícones que povoavam o imaginário do europeu  invasor que demarcava o território brasileiro nos mapas territoriais antigos com essa imagem. Raphael Fonseca, estudioso do tema e curador da mostra diz que a exposição é resultado da pesquisa de quatro anos que ele desenvolveu no doutorado em história da arte na Uerj sobre redes de dormir. “De 2012 a 2016, reuni cerca de 900 peças que têm tecnologia ameríndia e passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro depois da chegada dos descobridores”. Raphael escreveu a tese, analisando como essas iconografias se transformaram no processo. Ele cita a carta de Pero Vaz de Caminha que fala das redes dos Tupinambás.

 

O sertanista Orlando Villas Boas, a maior autoridade em povos indígenas que esse País já conheceu, me revelou, em entrevista, que “as qualidades mais imediatas e surpreendentes das redes de dormir do índio brasileiro é a geometria estrita da concepção”. Vaivém traz no elenco cerca de 30 artistas contemporâneos indígenas, como Arissana Pataxó, Denilson Baniwá, Duhigó Tukano, Gustavo Caboco, Jaider Esbell que se juntam a nome expressivos da história brasileira de arte. A analogia de linguagem se estabelece como fio condutor lógico que leva o visitante às obras de Bené Fonteles, Cláudia Andujar, Bispo do Rosário, Ernesto Neto. Ao percorrer Vaivém temos a ilusão de viver em um mundo de comunicações e de outros fenômenos naturais ou não interligados como Neyrótika, fotos de Hélio Oiticica; as redes sugeridas de 1980 de Ernesto Neto e os crânios sobre redes de Tunga que nos levam a um discurso de vida e morte. Trabalho, instalação de Paulo Nazareth, agora retrabalhada, traz a “performance” sobre uma vaga de emprego anunciada em jornal, para um funcionário permanecer deitado em uma rede instalada no meio da exposição, oito horas por dia, até o fim da mostra. Aqui o que importa, apesar das aparências, não é uma relação com o real e sim com o desejo que provoca a experiência crítico social.Trabalhos de Hans Staden, Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas são pontos de reflexão do olhar europeu sobre os “selvagens”. Os trabalhos mais ocultam do que revelam sobre o mundo de escravidão e subjugo do índio e do escravo.

A literatura tem lugar com o clássico da tropicalidade, Macunaíma,1929, de Mário de Andrade, e  Batizado de Macunaíma, um desenho pouco exposto de Tarsila do Amaral. Do mobiliário de Paulo Mendes da Rocha e Sergio Rodrigues emergem o caráter limpo, elegante e econômico das matrizes indígenas. As fotografias de Maureen Bisilliat pelo sertão nordestino são testemunhas da força e riqueza da cultura dessa região desrespeitada pelo governo brasileiro. Tunga, um dos nomes fundamentais da arte contemporânea, está presente com nova versão de Bells Fall, com registros fotográficos da performance 100 Rede. Ele foi o artista convidado para inaugurar o CCBB São Paulo, em 2001.

Vaivém resgata a rede de dormir como ponto de inflexão sobre o percurso do Brasil colonial e se expande para além de uma narrativa final.


Vaivém

Centro Cultural Banco do Brasil SP: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro
Até 29 de julho de 2019 – Entrada gratuita
Todos os dias, das 9h às 21h, exceto as terças
(11) 3113-3651

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