Vista da exposição OBSCURA LUZ na Galeria Luisa Strina.
Vista da exposição "Obscura Luz", na Galeria Luisa Strina. Foto: Edouard Fraipont

Uma exposição coletiva pode ressignificar obras, inéditas ou já conhecidas. Obscura Luz, que ocupa toda a Galeria Luisa Strina coloca foco em trabalhos do acervo, agora enfeixados num conceito mediado pela luz, literal ou simbólica. Ao explorar a reserva técnica, a curadora Kiki Mazzucchelli funda um espaço relacional para as obras, sem romper com as categorias estéticas. O tema que norteia a coletiva é inspirado na obra Obscura Luz (1982) de Cildo Meireles, uma caixa branca montada na parede, com beiral sobre o qual se projeta a sombra de uma lâmpada. O paradoxo conceitual pode ser lido como estridência,  inversão da percepção ao mostrar uma fonte de luz que é ao mesmo tempo sombra.

A coletiva sugere um percurso que pode desvendar luminosidades literais ou intrínsecas e suas várias implicações. Sem se preocupar com analogia de linguagem, Mazzucchelli insere simultaneamente obras que têm repertórios visuais e discursivos diferentes dando ao público a tarefa de descobrir as afinidades. Logo na entrada o visitante é recebido por um conjunto de peças de pequenos formatos que exaltam a cor-luz e a exploração de texturas. Aqui destaca-se a obra de Enorê, desenvolvida entre o digital e o material. A jovem artista que vive em Londres se interessa pelo processo de transcodificação entre objetos físicos e o espaço digital, trabalha com 3D scanning/modelling, objetos têxteis, programação, cerâmica.

Na grande sala da galeria, a pintura de Fernanda Gomes sinaliza a polaridade do claro escuro que rebate em algumas obras. Como diz Vilém Flusser, “o significado das imagens é mágico” e a obra da Fernanda reafirma a máxima. Luz e sombra, binômio que produz metáforas e interpretações sobre onda, difração, forma vibratória de energia, opera de maneira concreta e opositiva na escultura de Anna Maria Maiolino. Como ela explica: “Os títulos desses trabalhos se referem à existência do oposto, o positivo ausente que foi separado do negativo. Eles formam um único corpo em dado momento do processo de feitura da escultura moldada. Assim, o procedimento desses trabalhos incorpora a nostalgia pela matriz. O molde, geralmente esquecido e descartado, ganha um novo valor pela ênfase dada às suas propriedades generativas, ao espaço vazio”. Essa operação de luz e sombra provoca surpresas, visuais e lúdicas, com hiatos alternados pela própria matéria. Há nesta proposta uma luz contundente alimentada pelo fundamento do construtivismo contemporâneo.

Jogando com possibilidades, movimentos e contrapondo-se à sua personalidade vibrante e inquieta, o trabalho de Laura Lima avança para uma sensorialidade de atmosfera zen. Contemplam-se nessa instalação jogos luminosos, planos e gravitações decorrentes de sua noção de arte como procedimento. O tecido branco, frágil, de transparência ímpar, originalmente portava foco de luzes com gelo seco e, por questões técnicas, como explica Mazzucchelli, agora não está ativado, mas ainda mantém a fluidez.

Remexer uma reserva técnica é ativar obras que estavam em repouso temporário. Evoco Harald Szeemann para lembrar que não há arte isolada, trancada em si mesma, arte é para ser compartida. O trabalho de Alexandre da Cunha pede a participação do observador. O quadro Sound I (2016) é revestido com tecido translúcido sob o qual emergem formas de duas grandes conchas, sobre as quais o visitante pode aproximar o ouvido e escutar sons. Duas perspectivas se cruzam neste conceito: a dimensão experimental da vida e a dramatização do que está oculto. 

Inspirados nos escritos de Walter Benjamin sobre noções de confronto, ordem e caos na sociedade contemporânea, Cinthia Marcelle e o cineasta Tiago Mata Machado produzem filmes motivados pelo entorno. Em Buraco negro o espectador acompanha a movimentação de uma porção de pó branco sobre uma superfície preta, causada pelo sopro de dois indivíduos ausentes do quadro. A performance provoca sons que contrastam com imagens abstratas lembrando constelações. Também sensorial, o trabalho de Tonico Lemos faz parte da série Paisagem noturna (2012). O painel executado com tecido trabalhado com figuras geométricas exibe a repetição de motivos triangulares que sugerem a silhueta de barcos a vela. O artista obtém esse efeito por meio da técnica de desfiar o tecido provocando uma trama aberta que depois é retrabalhada. Com um bastidor cria tons com diferentes intensidades que lembram desenho em carvão ou texturas de xilogravura. O artista faz referência à pintura modernista de Alfredo Volpi e a um trabalho de Mira Schendel de 1964.

A fotografia potencializa tudo aquilo que registra. A série Laudanum (1998) da australiana Tracey Moffatt é uma peça que opera em vários níveis de arte. Suas imagens se alimentam de algumas referências como o filme Nosferatu (1922), de Murnau. Do ponto de vista social e experimental alude ao consumo de láudano, planta usada para a produção de ópio e cocaína, classificada como opiáceo. Tracey tangencia a história da fotografia por meio do uso da fotogravura. A série tem luz especial e foi fotografada numa fazenda da era georgiana. Os negativos foram digitalmente remasterizados antes da impressão manual. Laudanum traz a particularidade de ser produzida na impressora de Mapplethorpe.

Obras de arte lidam com temporalidades que promovem fluxos diferentes entre elas. Os artistas contemporâneos propagam e constroem programas que sociabilizam os códigos de arte. Os objetos-instrumentos de sopro de Camila Sposati recuperam, ao mesmo tempo, mecanismo sonoros milenares e órgãos do corpo humano relacionados à fala e à audição. Confeccionada em argila branca, preta, e sob o título Phonosophia, a série iniciada em 2015 está intimamente ligada às suas pesquisas para procedimentos de transformação. Camila aproxima artistas e cidadãos comuns em um projeto/performance, impregnado de memórias afetivas entorno do barro e da inserção social na arte.

Considerada uma personagem errante, a fotógrafa Ingeborg de Beausacq nasceu na Alemanha, viveu em Paris antes se estabelecer no Rio de Janeiro em 1939. Como quase todos os migrantes precisava trabalhar, então decide estudar fotografia. No início faz retratos de crianças e mulheres da alta sociedade brasileira. Aos poucos vai entendendo a terra que escolheu viver, conhece artistas e, nos anos de 1945-1946, se apaixona e mantém uma relação turbulenta com o artista Flávio de Carvalho. Dois anos depois vai para os Estados Unidos onde se torna fotógrafa de moda. As imagens presentes em Obscura Luz fazem parte de sua produção de caráter mais autoral, as quais a notabilizaram.

Do grupo que fecha a mostra chama a atenção Sobrado dourado, obra de Baravelli exibida com mais 14 pinturas na 17ª Bienal de São Paulo, em 1983. Walter Zanini, curador daquela edição, destaca: “Um aspecto saliente da retomada da figura na pintura brasileira desenvolve-se na obra de Luiz Paulo Baravelli. Há dois vértices principais de preocupação na imaginária a que o artista se aplica com grande determinação. O primeiro diz respeito à construção de diferenciadas superfícies (em chapas de Duratex) que são ao mesmo tempo suporte e silhueta do que é representado. O segundo concerne à linguagem narrativa que o caracteriza.”

Estudos sobre identidade, consagração, pertencimento, dizem respeito a territórios. Lina Bo Bardi costumava dizer que quando o espaço é inteiramente familiar, ele se torna lugar. O extenso conjunto reunido em Obscura Luz, com suas travessias, coletividades e estranhezas constitui-se no lugar de legitimidade desta produção.

Vista da exposição OBSCURA LUZ na Galeria Luisa Strina.
Vista da exposição “Obscura Luz”, na Galeria Luisa Strina. Foto: Edouard Fraipont
Serviço

Obscura Luz
Galeria Luisa Strina: Rua Padre João Manuel, 755 – São Paulo, SP
Em cartaz até 3 de setembro de 2022
Visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 17h

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