Autor do livro “High price”, pelo qual ganhou o prêmio PEN de Escrita Científica Literária, ao lado de jovens brasileiros (Foto: Portal Aprendiz)

Centenas de pessoas se reuniram na Aparelha Luzia, no centro de São Paulo, no dia 13 de setembro, para a apresentação do Movimentos, coletivo criado por jovens das periferias e favelas do Brasil para discutir política de drogas. No evento, o grupo lançou uma cartilha de diretrizes sobre o assunto e promoveu um debate com com o neurocientista norte-americano Carl Hart, professor da Universidade de Columbia e autor do livro premiado “High Price” e Thiago Vinícius, da Agência Solano Trindade, iniciativa do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. A mediação ficou por conta de Nathália Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas e colunista do páginaB!.

“No Brasil nós nos tornamos realmente sofisticados em não lidar com os problemas das pessoas pobres. Em um país onde a maioria da população não tem educação escolar, estamos falando sobre drogas e política de drogas. Algo está muito errado com esta sociedade, porque devíamos estar falando sobre educação”, avalia Hart, primeiro professor negro da área na tradicional universidade em que leciona.

No que diz respeito à falta de acesso à educação, o País de fato desponta. Em 2014, foi classificado como o 8º do mundo com mais analfabetos adultos, segundo relatório da Unesco. Estudo do Instituto Paulo Montenegro com a ONG Ação Educativa aponta também que apenas 8% dos brasileiros tem completa habilidade de se comunicar pela escrita/leitura.

Debate em São Paulo aconteceu no centro cultural Aparelha Luzia (Foto: Divulgação)

Durante a discussão, o especialista enfatizou que um dos pontos mais importantes sobre o tema é que as pessoas não têm conhecimento sobre as substâncias e seus efeitos, têm acesso apenas a desinformações. Por exemplo: apesar de legalizado, o álcool é a droga mais perigosa, como prova pesquisa do psicofarmacologista britânico David Nutt, autor do livro “Drugs Without the Hot Air” e professor da Imperial College London. Além disso, no Brasil, onde a droga mais consumida é justamente o álcool, entre 2006 e 2008, 8 mil pessoas morrem por ano em decorrência do uso de drogas e 96% delas foram causadas pelas legalizadas, como álcool e o tabaco.s informações são do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas e da Confederação Nacional dos Municípios e estão impressas na cartilha de política de drogas porduzida pelo Movimentos.

A partir da provocação sobre a questão da educação, Hart usou como exemplo a Cracolândia para explicar como a política de drogas é apenas mais uma ferramenta de exclusão social utilizada pelo Estado.

“O que acontece quando falamos em Cracolândia é que damos a entender que usar crack é a única coisa que as pessoas estão fazendo naquele lugar. Nós estamos na contramão. Não são todos naquele espaço que são também usuários de crack ou outras drogas. Mas sabemos que nesses espaços todos estão na pobreza. O que também sabemos é que muitas pessoas naquele lugar têm problemas psiquiátricos que precisam ser cuidados – não problemas com drogas, mas problemas psiquiátricos”, reflete.

O pesquisador sugere que é necessário regular o mercado se estamos preocupados com a saúde dos usuários de drogas. Por serem proibidas, muitas vezes as substâncias são adulteradas e vêm com impurezas, que podem ser mais nocivas à saúde que os próprios entorpecentes.

Carl Hart é professor em Columbia, em Nova York, nos EUA

Além disso, Hart realizou um experimento em Nova York com usuários de crack no qual oferecia doses da substância ou dinheiro e comprovou que os usuários tomam decisões racionais, ao contrário do que se imagina a partir da visão estigmatizada que se tem sobre “viciados”. Para ele, portanto, a violenta guerra às drogas é um recurso utilizado para manter a população pobre e negra marginalizada.

“O termo nos permite não lidar com as pessoas e os problemas reais que elas enfrentam. Assim, os políticos usam o termo Cracolândia, e isso quer dizer que eles não têm responsabilidade pelas pessoas ali. Eles não têm que se preocupar com a educação daquelas pessoas, não tem que se preocupar se essas pessoas estão doentes psicologicamente. Não têm que se preocupar com a discriminação racial”, pontua.

Dessa forma, o especialista trouxe à tona como a guerra às drogas é forçada, seletivamente, para assegurar que encarceremos alguns segmentos sociais: “Nessa sociedade, assim como na norte-americana, nossas políticas de drogas são usadas para prender seletivamente nossos cidadãos pretos”. Os dados não o desmentem: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país e 67% da população carcerária é preta – no entanto, são os jovens da classe A os maiores consumidores nacionais de drogas (negros representam apenas 17% da classe mais rica do país, apesar de serem 53% da população brasileira).

As histórias contadas durante a noite na Aparelha Luzia também confirmam o que diz: Thiago Vinícius, morador do Campo Limpo e um dos fundadores da Agência Solano Trindade falou sobre o assassinato de seu irmão, que se envolveu com a criminalidade. “A nossa luta é muito maior que Marcha da Maconha, a nossa luta é de irmãos e famílias nossas, porque nossa família que está morrendo, então é disso que temos que se ligar”. Para o jovem, o debate de guerra às drogas deve se voltar para o plano econômico, pois foi um impulso econômico que motivou seu irmão a ir para o crime.

Foi também esse fator que levou Thiago Vinícius a criar uma moeda social na sua região: “Falaram que não tínhamos dinheiro. Fomos lá e fizemos o nosso: o Solano, uma moeda própria que é aceita em mais de 100 comércios lá no Campo Limpo. A gente tá fazendo a economia girar entre nós. É o black money acontecendo. Entendeu, parceiro?”

O Solano surgiu dentro da Agência Solano Trindade, um empreendimento cultural próximo ao Terminal Campo Limpo criado por jovens que trabalham em ações culturais na Zona Sul de São Paulo. Seu objetivo é fomentar a cultura nas periferias, por meio da economia criativa.

“Só assim que a gente vai conseguir reverter esse quadro, pra que esse preço não possa ser alto. Queremos financiar as nossas próprias campanhas, não depender de partido nenhum. Eu faço parte de uma geração que tirou a minha comunidade das páginas policiais para ocupar as páginas culturais. Eu tenho orgulho de fazer parte dessa geração, uma geração que ocupou a Bienal, levou para lá o funk, os Guarani da Tenondé Porã…”, conta Vinícius.

Jovens do “Movimentos” em atividade realizada no Rio de Janeiro (Foto: Reprodução/Facebook)

Todo esse debate só foi possível por conta da apresentação do Movimentos, criado há mais de um ano por jovens das periferias e favelas do Brasil que querem descentralizar o debate em torno da política de drogas e trazer a perspectiva de quem mais é afetado por ela.

“Chamamos de Movimentos porque entendemos que há uma pluralidade de movimentos que acontecem na favela, não é só aquele termo preconceituoso de que o movimento é o tráfico e tudo o mais, a gente entende que aquilo ali é um espaço vivo onde os corpos circulam”, explica Aristênio Gomes, que cresceu na Maré, é estudante de História na UERJ e um dos participantes do coletivo.

Sua fala remete à introdução da cartilha criada pelo grupo, na qual afirmam que ainda que uma nova política esteja sendo elaborada, por conta da guerra às drogas, “temos perdido a potência de uma geração de jovens – em sua maioria negros – que, assassinados ou presos, acabam virando estatística. Só que, nesse debate, a voz da favela continua sendo excluída”.

Nas palavras de Gomes: “Esse grupo nasce da necessidade de se fazer ouvir. Também queremos que tudo que a gente fala sobre drogas até hoje chegue na favela. Nesse debate a proposição tem que vir dali, tem que vir do favelado, quem sofre por isso, tem que vir do preto, quem morre por isso, quem tá sendo preso por isso… É essa galera que tem que falar!”

Para conhecer as políticas públicas propostas pelo Movimentos, baixe aqui a cartilha de drogas que lançaram ou acesse a fanpage no Facebook.

QUER SABER MAIS SOBRE O TEMA? CONHEÇA OS LIVROS

“O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas”, de Denis Russo Burgierman. Editora Leya Casa da Palavra. 1ª edição, 2011.

“Drogas: as histórias que não te contaram”, de Isabel Clemente. Editora Zahar. 1ª edição, 2017.

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