A luta por moradia é uma questão endêmica no Brasil. Em São Paulo há aproximadamente 600 mil sem teto. Paradoxalmente, há cerca de 600 mil edifícios abandonados pelos proprietários, sem função social, espalhados pela capital.

A luta por moradia não é exclusividade de um único movimento. Apenas sob a bandeira da FLM – Frente de Luta por Moradia, existem outras 13 siglas que se uniram em prol do movimento.

Na segunda feira 14 de maio de 2018, paginaB participou da inauguração da exposição Ocupar, Resistir, Construir e Morar, que traça a história do movimento em fotos, mapas e quadrinhos, na ocupação Nove de Julho que integra uma dessas bandeiras e está embaixo do guarda-chuva do MSTC – Movimento dos Sem-Teto do Centro.

À entrada da ocupação Nove de Julho, como em todas as outras ocupações da FLM, há regras. As pessoas precisam se identificar com nome, RG e CPF.

A Nove de Julho funciona em um antigo prédio do INSS, Instituto Nacional do Seguro Social, que estava abandonado há 30 anos, no centro da cidade. Hoje, dois anos após a ocupação pelo MSTC, o edifício em constante reforma abriga 121 famílias. De acordo com o movimento, cada família paga 200 reais para ajudar a manter a ocupação, reformar os espaços e construir novos cômodos.

Na apresentação pública, que aconteceu durante a abertura, uma das moradoras que veio do Rio de Janeiro, falou “Quando cheguei aqui senti como se tivesse nascido de novo. Aqui temos idosos, cadeirantes e as pessoas me tratam bem o tempo todo. Minha Casa Minha Vida deveria ser contemplado a partir de movimentos de moradia, porque aqui as pessoas estão preparadas para ocupar essas casas. Aqui temos regras, respeito e compromisso”.

Dentro do prédio, funciona ainda um cursinho popular organizado pela Uneafro. O objetivo do curso, de acordo com a organização, é colaborar com a formação de cidadãos “porque o sistema exclui os pobres e pretos”, explicou.

Já nos corredores de acesso, fotos, em sua maioria sub-expostas, em alto contraste, em sombras e cores densas, trazem imagens sobre o cotidiano das ocupações. De forma organizada. Do outro lado do corredor, a historia é desenhada em quadrinhos em preto, branco e realces vermelhos.

Quadrinho criado para a exposição da ocupação Nove de Julho - Foto: PáginaB
Quadrinho criado para a exposição da ocupação Nove de Julho – Foto: PáginaB

Além dos desenhos e das fotos, a montagem apresenta também os mapas que compõem o trabalho de doutorado de Jeroen Stevens, urbanista, professor da Universidade de Leuven, nos arredores de Bruxelas, na Bélgica. Stevens promoveu uma extensa pesquisa sobre ocupações no centro de São Paulo. O trabalho envolveu dezenas de pessoas e durou cerca de quatro anos, e viagens entre o Brasil e a Bélgica. Ao todo, ele e mais de 30 dos seus alunos, produziram mais de 43 mil fotos nesse período.

O trabalho de Stevens propunha mapear e compreender o projeto urbanístico desenvolvido organicamente pelas ocupações. “Está na moda arquitetos desenvolverem projetos participativos. Eu não quero criar um projeto e então convidar a comunidade para participar. Eu quero participar da ocupação e junto com eles aprimorar o projeto que o movimento já esta fazendo”, disse.

Foi assim que acabou morando por 15 meses em ocupações ligadas à FLM, mas foi na ocupação Nove de Julho, gerida pelo MSTC, Movimento Sem-Teto do Centro, onde ele passou a maior parte do tempo. “ Eu quero estar com as pessoas na ocupação. Por isso fizemos essa exposição (aqui), não queria que isso ficasse apenas dentro de uma sala do Mackenzie com três outros acadêmicos”, ele explica. Na sua visita mais recente, Stevens apresentou sua tese para uma banca na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

A cidade das ocupações

Durante os quatro anos em que acompanhou as ocupações, Stevens pesquisou o impacto social e urbanístico das reformas elaboradas dentro dos edifícios na cidade de São Paulo. Ele diz, ainda, ter aprendido mais com os moradores e militantes dos movimentos de moradia que conheceu do que em sua faculdade, “Eu nunca vi um urbanista fazer um projeto desses”. Foi graças ao convívio que o pesquisador aprendeu a falar português.

O estudo gira entorno do mapeamento das ocupações do centro da cidade como sendo uma nova cidade, inserida na realidade da primeira. “Quando se junta todos esses prédios [ocupados], temos uma cidade sendo construída nos vazios da cidade que já existe. A cidade da luta por moradia”. Os quadrinhos e as fotos são um complemento importante que ressalta a analise urbanística realizada pelo pesquisador.

De acordo com o levantamento realizado por ele, essa cidade de ocupações somaria cerca de 25 mil pessoas, dentre as quais 10 mil são moradores e outras 15 mil pessoas são participantes diretos ou indiretos da vida urbana da cidade de ocupações.

Para se ter uma ideia, essa tal cidade dispersa no centro paulistano teria mais habitantes que municípios paulistas como Bofete e Ouro Verde, com 9.618 e 7.800 pessoas, respectivamente, de acordo com o Censo do IBGE de 2010.

Um das particularidades dessa cidade, segundo o pesquisador, é o ritmo da vida das pessoas que compõem essa população, “Essa cidade não para. Estão o tempo todo reformando, construindo, pintando, tudo para terem um lugar digno para morar”, afirmou. De fato, mesmo durante a abertura da exposição, havia, por todos os lados, pessoas trabalhando na reforma do prédio. Mesmo durante o debate, trabalhadores carregavam dezenas de sacos de cimento para uma sala que estava sendo reestruturada.

 

Pagar para morar

Todo o trabalho de pesquisa de Jeroen Stevens começou quando ele visitou a antiga ocupação do Hotel Cambridge, também no centro de São Paulo. Foi lá que ele conheceu, por intermédio de um amigo, a coordenadora do MSTC, Cármen Silva.

A coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro é bastante conhecida dentro e fora dos movimentos de luta por moradia. Uma das razões, além da sua notável liderança, é a acusação que pesa sobre ela.

Cármen Silva, em 2016, foi acusada de coagir moradores para o pagamento de taxas da ocupação Nove de Julho. Em vídeos compartilhados na internet é possível ver Cármen criticar aqueles que atrasam o pagamento das taxas. Em outro vídeo, ela discute com uma moradora, que acabou sendo expulsa da ocupação após votação em assembleia. Ao portal G1, a ex-moradora disse que depois de sair da ocupação passou a receber ameaças, inclusive de morte. Há dois anos, o Ministério Público investiga o caso. Até o momento, oito pessoas foram ouvidas.

Cármen mantém-se firme em sua posição. Durante a abertura da exposição, em rápido pronunciamento e sem citar o ocorrido, ela ressaltou a importância da contribuição dos moradores para a ocupação e concluiu: “Eu tive que descer até o pó para conhecer a grandeza da solidariedade […] Aqui, nós estamos preparando cidadãos para ser parte do Estado, não à parte dele. O sentido da sociedade é a organização e como eu, há muitas outras carmens por aqui”.

O pesquisador Stevens, que viveu o cotidiano das ocupações, concorda com a importância de colaborações e o pagamento de algumas taxas para manter as ocupações, “é impressionante o que [os moradores] fazem nas ocupações com tão pouco dinheiro do aluguel. Em termos arquitetônicos, não teriam como pagar pelas reformas”, explicou.

Stevens cita, como exemplo de bom uso de recursos e boa manutenção, a Ocupação Mauá, que fica no antigo prédio do hotel Santos-Dumont e que foi abandonado nos anos 1980. A Mauá é, atualmente, a ocupação mais antiga do centro de São Paulo em atividade. Em 2018, ela completou 11 anos. Os argumentos de Stevens, quanto ao trabalho de reforma urbana e função social dos ocupantes, resumiu-se a uma foto do antigo hotel abandonado ao lado do mesmo prédio, agora reformado e que se tornou símbolo da luta por moradia no estado de São Paulo.

Ocupação Mauá, no prédio do antigo hotel Santos-Dumont antes (esquerda) e depois (direita) de ser ocupada
Ocupação Mauá, no prédio do antigo hotel Santos-Dumont antes (esquerda) e depois (direita) de ser ocupada

No debate sobre os sistemas alternativos de como ter acesso à moradia, toda informação é pouca. Trata-se de uma realidade complexa e da qual o Estado está longe de dar conta.

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