açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha
açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. Foto: Luzia Sigulem

Por Giussepe Cocco*

Na edição de maio do Le Monde Diplomatique(1), escrevemos que “não existe amor no Brasil Maior” e explicitamos: “O ‘amor’ só existe na prática das lutas e da democracia, ou seja, na organização autônoma do conflito (e não da harmonia). Somente homens livres constituem a paz, e a ‘causa mais livre é aquela interna’, imanente às lutas por uma cidadania total”. Falamos também que “na crise da representação e da política, o único horizonte que interessa é o da mobilização radicalmente democrática, por difícil e enigmática que seja hoje essa equação”. Em maio, quando foi publicado, o artigo parecia conter posições totalmente destoantes do consenso que vigorava em torno do projeto de construir um Brasil Maior, ou seja, um país rico e sem pobres, povoado por uma “nova” e gigantesca classe média consumidora de carros.

Em São Paulo, o “amor” tinha sido decretado e um jovem prefeito encarnava o “novo”. A política de patrocínio cultural já tinha seus circuitos e os jovens nas “viradas”. De repente, tudo veio a baixo. Passadas as eleições municipais, os prefeitos de direita e de esquerda do todo o País aplicavam os aumentos de tarifas. Em Natal, o protesto foi massivo e violento. As passeatas em São Paulo e no Rio pareciam destinadas a marcar ritualmente as mobilizações que o Movimento pelo Passe Livre promovia – com justa determinação – há anos.

A polícia paulista reprimiu com a truculência costumeira. O resultado foi um incêndio generalizado, que ainda continua e se propaga. O protesto contra os 20 centavos se constituiu em um Kayrós formidável da primeira grande greve selvagem das metrópoles brasileiras. A questão da mobilidade urbana agregou a multiplicidade de lutas que resistiam ao rolo compressor do Brasil Maior.

Depois da crise do capitalismo global e do aprofundamento da crise da representação, o PT e o governo Lula/Dilma passaram a acreditar de maneira cada vez mais autorreferencial em suas propagandas eleitorais e nas pesquisas de opinião. A grande novidade no Brasil era a “nova classe média” e para ela é preciso subsidiar os Global Players nacionais (aquela que seria a grande indústria nacional) e multiplicar megaobras (barragens, centrais e submarinos nucleares) e megaeventos: o Brasil Maior teria, assim, não apenas uma base social (a classe média), mas também a reciclagem de um modelo, o nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de “neo”. Enfim, para os jovens inquietos, o circuito do “amor” e para os outros, o cassetete das PMs: é o que foi reservado para os favelados removidos, os camelôs reprimidos, os índios do Xingu, os quilombolas e para todos aqueles que ousassem contestar o processo de gentrificação das cidades.

O que o movimento hoje afirma, de maneira que ninguém pode evitar de ver, é que no capitalismo contemporâneo, além de não haver capital nacional (a não ser o falido Império Eike Batista, que hoje se constitui na maior bomba a efeito retardado da crise), não há classe média coisa nenhuma. A mobilidade social proporcionada pelo governo Lula/Dilma diz respeito à mobilização de outro tipo de trabalho, um trabalho que acontece nas metrópoles e para o qual a “cidade”, os serviços e suas qualidades são não apenas fundamentais, mas seu terreno de luta e organização.

Lula organizava as greves selvagens dos metalúrgicos e hoje as greves selvagens do trabalho imaterial acontecem nas metrópoles. Com a diferença que, na era do novo sindicalismo, havia uma relação entre composição técnica da classe (o operariado massificado das grandes plantas de produção fordista) e suas formas de recomposição política. Embora o PT – inicialmente – tenha sido uma inovação da forma de partido, no sentido de conter uma dose muito maior de pluralismo do que os tradicionais partidos socialistas e/ou comunistas, ele foi se organizando em torno de uma organicidade e de uma liderança bem definidas (o próprio Lula).

Não significa o “fim” dos partidos. A crise diz que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando têm relação viva com a fonte horizontal

Hoje, a greve metropolitana se auto-organiza e deve sua potência à ausência de organicidade e liderança. O que não significa que não tenha linha, muito pelo contrário. O PT, e a esquerda de governo que lhe está atrelada, não entenderam essa transformação não somente porque puxaram o pragmatismo até o oportunismo do aparelho, mas porque o que sobra de “esquerda” (sobretudo com a Dilma) é uma visão teleológica do progresso e a crença que a política se faz a partir do Estado: não produzir outros valores, mas gerir mais rapidamente e mais racionalmente (de olho nas planilhas dos custos) a mesmíssima linha de progresso, as mesmas barragens, os mesmos consumos, os mesmos valores da direita.

Quem se opõe é um obstáculo, eventualmente arcaico, eventualmente a ser cooptado ou, cada vez mais, a ser reprimido. A esquerda de oposição errou (e o episódio das bandeiras lhe mostrou que ela não está fora da crise da representação) porque pensa que a oposição a esse desenho, a esse pragmatismo oportunista viria de fora, da manutenção de um ideal e, pois, de uma crítica negativa e fundamentalmente moralista desse modo de governar.

O levante da multidão metropolitana nos mostra de maneira generalizada o que os índios, os operários das barragens, os professores e estudantes do Reuni já tinham antecipado: a luta e a revolta vêm de dentro desses deslocamentos. Dentro e contra o Brasil Maior, havia um sem-número de brasis menores (indígenas, favelados, negros, estudantes, mulheres, queers, LBGT) e hoje eles estão aí: um MundoBraz(2), um devir-mundo do Brasil e um devir-Brasil do mundo que explicitam na potência das redes e ruas a transmutação de todos os valores.

É nesse horizonte potente dos possíveis que é preciso ver que a crise da representação não apenas chegou ao Brasil, mas atravessa as esquerdas. Essa crise não significa o “fim” dos partidos e tampouco a extinção de todo o tipo de verticalidade e instituição. Ela apenas diz – e isso já é muito – que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando elas têm uma relação viva com sua fonte horizontal, constituintes.

 


(1) http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1413
(2) Giuseppe Cocco, Mundobraz, Record, 2009

*Professor da UFRJ e autor de MundoBraz (Record, 2009) e coautor de GlobAL (Record, 2005), com Antonio Negri

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