O artista Jaime Lauriano conta que começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial". FOTO: Divulgação

 

*Por Mariana Tessitore

“Para eu estar aqui hoje falando, muitas pessoas que vierem da África para serem escravizadas tiveram que morrer.” É assim que o artista Jaime Lauriano começou essa conversa com a ARTE!Brasileiros no final de 2016. Com seus óculos grandes e redondos, e o mapa do continente africano tatuado em seu braço, ele recebeu a reportagem no Ateliê 397, espaço de intervenção cultural sediado na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo.

Lauriano falou sobre a sua atuação como artista iniciada em 2007, após sua formação no curso de artes visuais na Faculdade Belas Artes. Em 2011, sua produção teve um hiato de um ano, no qual trabalhou com marketing político “para entender como a estrutura funcionava por dentro”.

Porém, em 2012 decidiu retornar ao campo das artes, iniciando um projeto que propõe releituras de momentos chaves da história brasileira. No ano passado, a Pinacoteca do Estado de São Paulo adquiriu a sua instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, o que conferiu maior projeção ao artista.

O coletivo é uma questão central para Lauriano. Ele reforça que o seu corpo é fruto de uma ancestralidade, marcada pelas lutas dos grupos marginalizados ao longo da história. “Falar dessa coletividade é uma das responsabilidades que assumi para mim. Não necessariamente tematizando isso, mas afirmando que sou um produtor de origem africana, que algo está gravado no meu corpo. E isso a polícia e a segregação racial me lembram a todo o momento”, conta o artista.

Em seu último projeto, Lauriano reconta a história brasileira a partir de três perspectivas: o trabalho, a dominação do solo e a criação do Estado nação. Esses três pontos foram investigados em exposições que o artista realizou respectivamente no Centro Cultural São Paulo, na Galeria Leme e no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio. Segundo Laureano, o intuito era “buscar no passado as explicações para o que acontece no presente. Queria entender questões como: por que se matam tantos jovens negros? Ou por que até hoje ainda criamos tantos slogans nacionalistas?”.

Para responder a essas indagações, ele foi aos arquivos públicos do Rio e de São Paulo. Lá encontrou diversos documentos, a partir dos quais criou suas obras mais recentes.  Nos últimos anos, o arquivo se tornou uma referência constante nos trabalhos de arte contemporânea. Indagado sobre essa questão, Lauriano comenta: “É uma tentativa de ‘ficcionalizar’ os arquivos para mostrar que a história que nos é contada também é uma ficção. Não se trata de criar uma nova história oficial, mas de apresentar outras possibilidades e perspectivas”.

Em 2014, Lauriano tirou o pó dos arquivos da ditadura militar para criar dois vídeos que apresentou na coletiva I Mostra, no Centro Cultural São Paulo, realizada durante o período da Copa do Mundo no Brasil. Em Morte Súbita, o artista filma pessoas encobrindo o rosto com a camisa da seleção brasileira, enquanto um narrador lê os nomes de 25 desaparecidos políticos da década de 1970. No vídeo, “a câmera faz um travelling, mostrando essas pessoas de perfil, como se estivessem escutando o hino antes de uma partida, tomando um enquadro ou ainda prestes a serem fuziladas”.

 

Na obra, o artista chama atenção para como o esporte pode ser utilizado como instrumento de exaltação patriótica: “Eu quis falar sobre a Copa do Mundo de 1970 porque, ao mesmo tempo em que todos torceram pelo Brasil, esse foi o ano que a ditadura militar conseguiu desbaratar a luta armada. Também foi o período do milagre econômico, a população empolgada com a distribuição de renda pelo consumo. E é muito contraditório porque essa é uma retórica que se dá até hoje em qualquer tipo de governo”.

No ano passado, o artista realizou a exposição Autorretrato em Branco Sobre Preto na Galeria Leme. A mostra foi um marco em sua carreira, funcionando como “um autorretrato, não só meu mais de uma condição social, dessa imposição da sociedade branca sobre os corpos negros, e como isso atravessa a história do Brasil”. Foi lá que ele apresentou a instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, composta por uma muda de Pau Brasil plantada dentro de uma estufa. Na obra, há todo um sistema, com irrigação e ventilação, que garante as condições ideais para que a árvore viva. Porém, ao crescer, a árvore provavelmente morrerá por asfixia ou por explodir os vidros da estufa ao aumentar de tamanho.

Lauriano afirma que, assim como na estufa, no Brasil “há as condições ideias para o crescimento, mas a gente aprisiona. O Estado subsidia transporte, saúde, enfim, muitas coisas, mas também cerceia a liberdade, as pessoas têm fronteiras, passaportes, polícias. O primeiro escravizado no Brasil foi o índio para retirar o pau Brasil, que é perversamente a planta que dá nome ao País. Então, aquilo que nomeia a nação é o sinal do primeiro genocídio, a primeira tortura. No trabalho, eu queria pensar tudo isso”.

Jaime Lauriano, ‘Nessa terra, em se plantando, tudo dá’, 2015.

O atual diretor artístico da Pinacoteca, Tadeu Chiarelli, viu a obra na exposição e decidiu adquiri-la para o acervo da instituição. Depois de comprar a peça, Chiarelli fez outras aquisições de obras de artistas afrodescendentes, que comporiam a exposição Territórios, apresentada neste ano na comemoração dos 110 anos da instituição.

Lauriano conta que a partir desse momento, começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial, mas que até hoje  prega a meritocracia e a democracia racial como pilares fundadores”.

Para o artista, a inserção do negro no mercado da arte é “um trabalho de formiguinha. Eu, por exemplo, indico pessoas para outras exposições. Entendo que criar uma rede, uma comunidade de pessoas também faz parte do trabalho artístico. Aprendi isso porque ouço muito rap desde criança e isso é muito forte no rap, essa indústria que é abastecida por produtores afro-brasileiros. E eu acho que esse pensamento também precisa estar nas artes plásticas, quanto mais gente conseguirmos trazer juntos, vamos lá sabe? Onde passa boi passa boiada. Abriu uma fresta, vem gente. Eu e algumas pessoas estamos conseguindo abrir essa fresta, esse lugar de diálogo”.

Em sua última exposição, apresentada neste ano no CCBB do Rio, Lauriano continuou propondo conexões entre o passado e o presente. Na obra Calimba, por exemplo, criou carimbos com 25 manchetes de jornais sobre linchamentos realizados no Brasil. Os carimbos remetem à prática adotada pelos senhores de marcar os escravos a ferro. O artista conta um pouco sobre o processo de concepção da obra: “Enquanto eu pesquisava nos jornais, me lembrei dos linchamentos praticados na década de 1920 no sul dos EUA. Eram homens negros espancados, enforcados e pendurados em praças públicas. Essas imagens viravam cartões postais como se fossem paisagens que deveriam ser contempladas. Isso durou cerca de 20 anos. E aqui no Brasil, nesse tempo, estávamos vivendo o auge da democracia racial. Isso também acontecia, só não era divulgado. Tudo isso me fez pensar na violência colonial, em como ela é atualizada hoje nesses linchamentos, que de novo são feitos na praça pública pela sociedade civil, e não pelo Estado. É impressionante como a violência também transita historicamente”.

Lauriano comenta que uma parte do seu trabalho é justamente aparecer na imprensa para questionar os estereótipos associados aos afrodescendentes. “É importante mostrar que existe outro lugar para o jovem negro que não o do suspeito em potencial. Até porque o negro no Brasil hoje nem é mais suspeito, ele já é o acusado, aquele que fez a treta.” Otimista, ele afirma que, devido à presença de artistas como Sonia Gomes, Emanoel Araújo e Paulo Nazareth, o meio das artes tornou-se mais aberto, mesmo que obviamente ainda exista preconceito. Porém com o fortalecimento da discussão, “torna-se muito mais difícil apagar ou silenciar o negro”. Como diz o artista, onde passa boi passa boiada.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora

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