Antonio Dias, 'Você escapando', 1964. FOTO: Vicente de Mello

Na história da arte os períodos de transição são sempre um tanto negligenciados. No afã de apresentar sínteses perfeitas dos movimentos dominantes em um determinado período, os pesquisadores se esquecem de iluminar as zonas cinzentas, os processos híbridos, saltando de certezas em certezas. Felizmente de quando em quando surgem alguns esforços na tentativa de compreender os momentos transitórios, como se pode ver na mostra “Entre Construção e Apropriação – Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 60”, em cartaz no Sesc Pinheiros até 03 de junho.

Não se trata de uma exposição rememorativa nem tampouco da conjunção de três mini-retrospectivas. Construída com vagar e atenção, a mostra propõe uma trama complexa entre a obra dos três artistas e a cena artística e cultural do Brasil nos anos 1960. Ao mesmo tempo em que cada uma das poéticas contempladas são únicas, elas também são fortemente reveladoras das profundas tensões por que passava o país naquele momento, tanto em termos culturais e políticos mais amplos, quanto em relação ao processo de transição entre o tipo de arte predominante na década anterior (o construtivismo) e a gestação de um tipo de expressão artística mais vinculado ao pop, movimento que tem origem na Inglaterra dos anos 1950 e que a partir da década seguinte se espraia pelo mundo sob a primazia americana.

Como o visitante é relembrado numa cuidadosa linha do tempo montada a partir de textos e imagens de época que abraça a exposição, listando diversos acontecimentos importantes entre os anos 1960 e 1968, trata-se de um momento marcado por violentas transformações culturais, por uma influência crescente da cultura de massas, pela luta em defesa das liberdades individuais em todo o mundo, ao mesmo tempo em que internamente a violência e a repressão criavam um ambiente em franca ebulição. Explicitar tal ambiente torna mais fácil entender o momento de transição vivido pelos três artistas contemplados. Se não é evidente a aproximação entre as produções de Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman, pensá-las inseridas no contexto cultural mais amplo faz com que o diálogo entre elas se torne mais explícito e torna mais ricas suas leituras particulares.

Mesmo provindo de gerações e regiões diferentes do país, os três apresentam nos anos 1960 um resgate da figuração, do uso das imagens do cotidiano como forma de expressão e uma apropriação crescente da linguagem gráfica (que todos exploram em paralelo às poéticas plásticas), deixando de lado a busca pelo rigor geométrico-construtivo, hegemônico nos anos 1950. “Parece ter havido sim um esgotamento das poéticas construtivas afinadas com o projeto nacional-desenvolvimentista”, explica o curador João Bandeira. A concepção da mostra, que propositalmente amplia a reflexão para além do campo das artes visuais, enfatiza os passos dados por eles em direção a um tipo de representação de matriz mais expressionista, em que a deformação da figura humana assume uma importância crescente.

É curioso notar ao longo da exposição – propositalmente idealizada como uma espécie de labirinto em que uma poética conduz à outra – como o nexo existente entre as pesquisas particulares e a inquietação mais geral. Segundo Bandeira, há no período entre a última exposição neoconcreta (1961) e a antológica mostra Nova Objetividade Brasileira (1967), que conta com a participação dos três artistas contemplados, uma consciência crescente de que o que havia sido feito nos anos 1950 não se aplicaria mais aos interesses estéticos do momento.

Do veterano Geraldo de Barros (1923-1998) a exposição traz um conjunto de obras praticamente inéditas, nas quais há uma evidente experimentação de novos caminhos. As formas construtivas dos anos 1950 dão lugar a composições figurativas, como flagrantes urbanos. O caráter serial, marca forte na obra de Barros, é indiscutível. Todas as pinturas têm a mesma dimensão, foram feitas em cima de material gráfico (dando a perceber aqui e ali a retícula publicitária) e utilizando as cores amarelo e preto. “Entre uma tendência e outra, ele ficou com as duas”, brinca o curador.

Mesmo que uma certa elegância decorrente da sensibilidade formal do construtivismo à brasileira seja mais evidente nas obras de Barros, Bandeira faz questão de enfatizar como a trama geométrica, a aplicação de elementos formais organizadores do espaço da representação plástica, estão também intensamente presentes nos trabalhos de Antonio Dias (1944) e Rubens Gerchman (1942). Neste período, a produção de Dias debruça-se sobre o corpo humano, que é recriado aos pedaços, reconstruído em formas tridimensionais que saltam das telas – em uma mescla de erotismo, escatologia e violência –, e que em alguns momentos faz alusões diretas à brutalidade vivenciada no período da ditadura, como por exemplo em “Carrasco”, obra de 1966 na qual se vê, no canto, as pernas de um enforcado.

Rubens Gerchman talvez seja, no trio, aquele que mais diretamente é associado à arte pop, pela apropriação que faz de elementos da cultura de massas, como demonstram dois de seus trabalhos icônicos, presentes na exposição: “Lindonéia, a Gioconda dos Subúrbios” e “O Rei do Mal Gosto”, ambas de 1996. Mesmo assim, fica clara sua adesão ainda à trama, à organização espacial decorrente de uma forma racional, construtiva de pensar o espaço da representação.

Dentre as características que garantem uma certa aproximação a criadores com personalidades tão fortes estão a combinação entre uma organização estrutural da forma e uma figuração deformada, expressiva; a busca de uma arte mais conectada com o contexto social e político de sua época, incorporando elementos materiais e simbólicos do momento e uma tendência a buscar um equilíbrio – mesmo que tênue – entre experiência formal e um olhar arguto sobre a realidade. Bandeira acrescenta outro aspecto unificador aos trabalhos desenvolvidos por eles nessa fértil e um tanto abandonada década de transição: “os três têm essa particularidade; têm algo de sinistro, violento depressivo e ao mesmo tempo vibrante”.

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