A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação
A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação

A arte contemporânea pode ser voz forte dos povos oprimidos? A 11ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, responde que sim. Notabiliza-se ao fazer uma mostra enxuta, simples na expografia, mas com tema e conceitos desafiadores, sem medo da censura que ronda as exposições brasileiras. Migração, racismo, territorialidade, pertencimento, resignificam o papel do negro na sociedade brasileira, a qual nunca o incorporou devidamente dentro do tecido social. Já na festa de abertura, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, a Orquestra de Câmara Fundarte dividiu o palco com cantores, atores, em performances contestadoras. Jovens artistas subiram ao palco com a faixa, Uma arte Inspira, Respira. Censura não, clara alusão à mostra Queer Museu, censurada e fechada no Centro Cultural Santander, no ano passado. Textos de Bertolt Brecht sobre liberdade também entraram em cena.

Reunidas em torno do tema O Triângulo Atlântico, com curadoria de Alfons Hug, que mora na África, os trabalhos sintetizam e denunciam a exploração e apagamento das nações africanas, tiradas à força de seus territórios, fato que até hoje reflete no drama de várias gerações que vivem sob desigualdades sociais no Brasil. O êxodo do Atlântico Negro provocou o processo de crioulização, promoveu o cruzamento de religiões, idiomas, tecnologias, culturas e artes. A mestiçagem, o sincretismo religioso também atuaram sobre a cultura indígena. Desde sempre esses povos são vítimas de uma invisibilidade proposital e só emergem com destaque na sociedade como nome de ruas, rios, comida, instrumentos, musicais.

O presidente da Bienal do Mercosul, Gilberto Schwartsmann, um médico sensível a essas questões é, sobretudo, um homem aberto que deu asas aos curadores, sem filtrar nada. “A meu ver, uma bienal tem que focar na qualidade artística da obra e não na quantidade delas ou dos artistas. O conjunto tem que ter densidade em todos os aspectos”.

Com esse suporte, os curadores Alfons Hug e Paula Borghi (adjunta) pensaram a Bienal em três espaços principais e outros periféricos. A mostra começa no Margs, com imersão pelo Oceano Atlântico, durante a diáspora e depois na escravidão. Se estende pelo Memorial do Rio Grande do Sul, onde pulsam as questões indígenas, e no Centro Cultural Santander com obras que pensam a cidade e o indivíduo. As performances estão espalhadas pelas praças da capital e por Pelotas, onde as atividades acontecem na Comunidade Quilombola do Areal e na Casa 6.

Sem se prender a artistas somente da região do Mercosul, esta edição reúne produção de praticamente todos os continentes. Os desenhos de Arjan Martins nascem diretamente sobre a superfície como demonstra seu painel de setenta e oito metros quadrados, um mapa com os pontos de chegada dos escravos no Brasil. Territorialidade também faz parte do universo do cubano J.Pavel Herrera que leva em conta a origem africana de Cuba, resignifica o conceito de Ilha, que só existe por causa do mar, um espaço simbólico de rota da escravidão e ao mesmo de tempo de transitoriedade, desejo de ir e vir. “O mar é um espaço de pertencimento, e também simbólico de perdas desde as travessias dos escravos até a simples tentativa de chegar ao outro lado. “É um território a ser olhado de um modo responsável”, recomenda Pavel Herrera.

A hipocrisia e a barbárie dos primórdios da colonização de Angola são o fio condutor da obra de Iris Buchholz Chocolate, alemã que vive naquele país. Suas peças são feitas com metais, cabelos artificiais trançados, penas de pavão, com os quais “borda” um manto imperial inspirado num paisagismo barroco, conivente com a escravidão. Sua pesquisa envolve questões em que pergunta: “Como nos distanciamos do passado quando carregamos o estigma de sermos os descendentes das vítimas e dos opressores?  O que o mundo esquece? E o que lembra? Somos as vítimas ou somos os culpados? Haverá certezas na vida? Como se conversa sobre temas que nunca são falados?

Para Gilberto Schwartsmann, o momento é oportuno para abordar todas as temáticas que envolvem a 11ª Bienal do Mercosul, que foi adiada por um ano e que teve a sorte de acontecer neste, quando se comemora os 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, o último país a abolir essa barbárie.

A 11ª edição se envolve com temas polêmicos e chega à administração de Porto Alegre, cidade onde existem cinco quilombos. No dia seguinte à inauguração da Bienal, o presidente se reuniu com lideranças das comunidades negras da cidade no Viaduto Abdias Nascimento, homenagem ao escritor e intelectual negro que cursou a Universidade de Nova York e é praticamente desconhecido na cidade. Como o estádio do Internacional de Porto Alegre fica próximo ao viaduto, os moradores o chamam “como gozação” de Mamzebe, time da República do Congo que eliminou o Internacional da Copa Mundial de Clubes, em 2010. Agora o viaduto tem placa com o nome de Abdias Nascimento, que foi colocada com a presença da esposa do escritor, a norte-americana Elisa Larking.

A 11ª Bienal do Mercosul dá um exemplo de sabedoria ao abordar questões tão polêmicas e pouco visíveis no circuito brasileiro de arte.

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